C A R R E G A N D O . . .

Instituto Libertário Cristão

Jeffrey Tucker 

Este artigo corresponde a uma outra visão sobre usura da perspectiva distributivista, também em voga atualmente. 

O que torna a “doutrina social” diferente do magistério de fé e moral da Igreja católica?

Grande parte desse foi instituído no início da história da Igreja, com evoluções ao longo do tempo como elaborações sutis e aplicações cuidadosas das verdades eternas.

A doutrina social (incluindo-se a Economia) é diferente. Passou por muitas sublevações e mudanças ao longo da história da Igreja, até mesmo inversões totais, muitas das quais fazem paralelo com desenvolvimentos históricos. 

Um dos casos mais notáveis a esse respeito é o empréstimo a juros. Foi condenado desde os primeiros anos da fé, mas essa condenação terminou no século XVI, liberalizada pela lei no século XVIII e, hoje, não é nem mesmo uma questão a se notar. Dificilmente se fala sobre isso, a não ser as advertências superficiais contra a usura (e a diferença entre o que são juros e o que é usura nunca é explicada). 

Como disse até mesmo a Enciclopédia Católica de 1912: a Igreja “permite a prática geral do empréstimo a juros, quer dizer, autoriza o imposto, sem que seja necessário indagar se, ao emprestar o dinheiro, a pessoa sofreu perda ou privou-se de ganho, desde que exija um juro moderado pelo dinheiro emprestado”.

Esse ponto de vista é totalmente oposto ao que prevaleceu da era Patrística até da Idade Média. Durante todos esses anos, a Igreja se opôs diretamente à instituição dos juros – tanto quanto é o Islã ou ainda mais. Isso só começou a mudar com o desenvolvimento de instituições monetárias sofisticadas na alta Idade Média. Isso permitiu aos teólogos a considerar o tópico de maneira mais cuidadosa e vir a perceber que os juros não são diferentes que quaisquer outros preços no mercado – algo a ser livremente negociado pelas partes envolvidas e que refletem as condições mutáveis de oferta e demanda.

Uma das primeiras declarações contra os juros vem do Concílio de Niceia, que buscou reprimir práticas avarentas entre o clero, dentre as quais estava o empréstimo a juros. O concílio condenou essa e outras tentativas como “ganhos desonrosos”. 

Por certo, foi uma doutrina sábia, necessária para pôr fim à corrupção, mas havia um pequeno problema. O concílio ampliou seu mandato além do clero e deu a entender que a prática era universalmente errada. Acrescentou uma prova das escrituras dos Salmos, de que o juro em si era imoral. “não empresta dinheiro com usura, nem recebe presente para condenar o inocente. Aquele que assim proceder jamais será abalado” (Sl 14, 5). A sugestão era de que a regra destinada ao clero realmente refletia um princípio social geral. 

E, assim, começou uma longa e trágica história da guerra de mil anos da Igreja Católica contra os juros e a profissão de emprestar dinheiro. E, de fato, essa foi uma guerra estranha, empreendida com pouca ou nenhuma base substantiva da Escritura (a base acima quase não é suficiente). Isso contradiz, até mesmo, a própria parábola de Jesus dos talentos, que supõe e louva a existência de pessoas que emprestam dinheiro e condena o fracasso em devolver o dinheiro inativo como desregramento. 

A guerra contra os juros foi uma guerra contra a lógica econômica básica. Os bens presentes são mais valiosos que os bens futuros; logo, faz sentido a pessoa que quer algo antes e não depois, mas não tem o dinheiro agora, provavelmente pagar um ágio. Além disso, emprestar é sempre arriscado, de modo que faz sentido haver uma recompensa atrelada à tomada de risco. Por fim, o dinheiro que é emprestado não é empregado de outro modo pelo proprietário, portanto, há um custo de oportunidade que será pago e uma compensação por essa solicitação. Por todos esses motivos e muitos outros, os juros são parte normal de uma sociedade comercial pacífica. 

Para compreender isso, é de grande auxílio considerar o caso da permuta em uma sociedade extremamente pobre. Digamos que você tem duas galinhas, mas só precisa de uma. Um sujeito aparece e quer a outra galinha, mas não tem dinheiro. Oferece uma batata – um negócio bem insatisfatório para uma troca de um por outro. Mas, mesmo assim, você quer que ele tenha uma galinha e não está, atualmente, necessitado, portanto, propõe um acordo. Ele poderá ter a galinha se te der alguns ovos por um mês. Afinal, ele poderá ficar com a galinha. 

Você está feliz. Ele está feliz. Todos ganham. Mas, por que o ágio dos ovos? Ele queria a galinha naquele momento e você não precisava da galinha naquele momento. Então, ele pagou para ter sua necessidade mais urgente suprida e você está satisfeito de abrir mão do controle de sua galinha, dado que dela provenha o fluxo de renda. Esse é o modo como funcionam os juros em uma economia de permuta. Na verdade, não há dinheiro envolvido, mas o princípio é o mesmo que é tido como parte normal da vida comercial hoje em dia. 

E na verdade, a Igreja nunca objetou a esse tipo de acordo. Afinal, com base em que alguém poderia discordar? É mutuamente benéfico de todas as maneiras. Ninguém é roubado. Tudo é transparente. Poderíamos até dizer que a sociedade é muito melhor assim. A alternativa é que uma pessoa fique sem comida e outro tenha um recurso ocioso. É melhor alcançar um grau maior de harmonia social com esse tipo de acordo do que ficar com a outra alternativa. 

A introdução do dinheiro na história não muda nada da substância moral. Isso é porque o dinheiro nada mais é que um representante dos bens. É o bem mais valioso na sociedade, algo adquirido não para consumir, mas para ter e trocar por outros bens. O dinheiro também serve a uma importante função contábil: nem sempre você pode adicionar ou subtrair bens permutados (e vaca, maçã e iPad não podem ser agregados), mas você pode manipular os números em termos monetários. 

No entanto, por algum motivo desconhecido, o raciocínio das pessoas enlouquece quando o assunto dinheiro surge. Supõem que algo mal deva estar acontecendo porque as trocas se tornam complexas e bem desenvolvidas. Como acontece isso de pessoas ficarem ricas não por fazer coisas, mas simplesmente por arbitrar entre presente e futuro? Não existe algo moralmente suspeito nessa prática? 

Antes da alta Idade Média, não era comum que a maioria das pessoas tivesse algum tipo de dinheiro. A maioria dos camponeses trabalhava por comida e trocava as mercadorias que precisavam diretamente por bens. As economias eram locais e as instituições financeiras estavam disponíveis apenas para os muito ricos e poderosos. Ter dinheiro em mãos não era uma experiência comum para a maioria das pessoas. Poderia parecer que a compra e venda de dinheiro era a única província dos pecadores. 

De um ângulo católico, há uma questão adicional que diz respeito a um tópico difícil: os judeus. Tendiam a emprestar dinheiro. Isso mostrou ser um problema num tempo de intensa preocupação religiosa e sectária. Na verdade, muitas vezes vemos esse assunto surgir na legislação eclesiástica da Idade Média: todos os tipos de proibições e indulgências particularmente citavam os judeus. 

Mais tarde, na Idade Média, a começar do século XV, as economias começaram a mudar de maneira dramática. O feudalismo deu lugar ao capitalismo, dinheiro e finanças tornavam-se parte da vida cotidiana, e a compra e venda de dinheiro era menos a exceção que a regra na vida comercial que estava alcançando uma faixa cada vez maior da população. Os próprios católicos se tornaram grandes atores no mundo emergente das grandes finanças, em particular, a família de banqueiros de Jacob Fugger, que assumiram o domínio econômico da família Medici que negociou, principalmente, na política. Os Fuggers se especializaram em emprestar e cobrar, e, ao fazê-lo a pedido dos Estados Pontifícios – o que não me parece, de modo algum, problemático, mas que também pareceu enfrentar um problema do ponto de vista da doutrina social. 

Foram os neotomistas que começaram o processo de deslindar o ensinamento tradicional e abrir caminho para a plena legitimação dos juros. O primeiro grande passo foi dado por Conrad Summenrhart (1465-1511), catedrático de Teologia em Tubingen. Começou a criar exceções à doutrina estrita. Escreveu que o dinheiro é, por si, frutífero, um bem que pode ser comprado e vendido como qualquer outro. 

Quando alguém detém o dinheiro que empresta, está abrindo mão de algo que poderia ser, de outra maneira, lucrativo, portanto, deveria ser compensado por sua perda, do mesmo modo que qualquer outro comerciante. Ademais, disse Summenrhart, é útil achar que o dinheiro pago em troca pelo serviço de empréstimo é um bem diferente do próprio dinheiro – que é, possivelmente, um presente dado ao emprestador como sinal de estima. Summernhart não foi até o fim para habilitar os juros, mas disse que se nem o tomador do empréstimo nem o credor o viam dessa maneira, então, era permitido. Assim, os juros foram reduzidos a um estado de espírito e não a um fato objetivo. Isso representou um imenso progresso na doutrina da Igreja. 

O passo seguinte e final na liberalização dos juros foi dado por Tomás de Vio, o cardeal Caetano (1468-1534). Foi um dos principais teólogos católicos de sua época, um dos favoritos do Papa e defensor do catolicismo contra Martinho Lutero. Seus escritos representaram o que havia de mais sofisticado em sua época em termos de Economia. Endossou totalmente os ensinamentos de Summenhart e deu um passo adiante para dizer que qualquer contrato de empréstimo era legítimo se tanto o tomador do empréstimo quanto o credor concordassem com a antecipação de algum benefício econômico. Com cuidado, desmontou os escritos de Santo Tomás sobre o assunto e demonstrou que era perfeitamente justo para o credor, que está abrindo mão do uso de sua propriedade, cobrar uma taxa de serviço em troca. 

Desde essa época, não há um debate real na Igreja sobre essa questão. Sim, continuam a advertir contra a usura, embora ninguém tente mais fazer distinção entre juros e usura. Outrora foram considerados sinônimos, hoje, são diferenciados com reflexo do preconceito contínuo contra quem empresta dinheiro que parecem demonstrar mais avareza que caridade em sua função. Entretanto, na prática, não há diferença clara. Além disso, até as taxas de empréstimo aparentemente usurárias possuem uma função social: quanto mais altas as taxas de juros, mais a poupança é estimulada e o empréstimo desestimulado. 

O livro de John Noonan sobre a doutrina escolástica sobre a usura registra todas essas mudanças com precisão incrível e tornou-se o texto-fonte do qual outros estudiosos da doutrina econômica como Murray Rothbard empregou em seus escritos. Eles demonstram uma capacidade maravilhosa da Igreja de aprender e evoluir com o tempo, no que concerne à doutrina social. Não deveria causar surpresa observar as mudanças sutis, mesmo de um papado para outro. Por exemplo, muitas pessoas ficaram espantadas com o fato de João Paulo II ser mais simpático às instituições do mercado do que Bento XVI. 

Não acho isso nem um pouco desconcertante. A Economia é uma ciência que se desenvolveu tardiamente na história das ideias. Não é uma doutrina e não é uma questão moral, assuntos nos quais a Igreja pronuncia infalibilidade. A economia não é, de modo algum, o campo principal de competência da Igreja, e, às vezes, a linha que separa a teoria econômica da fé e da moral pode ficar embaçada. Se não servir para mais nada, essa história pode incutir um pouco de humildade nos mestres da Igreja e ser uma advertência com relação à Economia e às outras ciências.

*Este artigo foi originalmente publicado na Crisis Magazine.


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