Instituto Libertário Cristão
Ryan McMaken
Desde pelo menos a década de 1960, os especialistas e intelectuais do movimento conservador têm utilizado uma caricatura dos “liberais clássicos” como hedonistas amorais que fazem da liberdade um ídolo.
Os observadores modernos podem ser perdoados por pensarem que esta crítica só foi feita às pessoas a que chamamos libertários – algumas das quais são o tipo de pessoas que se despem até as cuecas nas convenções políticas do Partido Libertário.
Mas essas pessoas não são as (únicas) visadas aqui. Pelo contrário, há muito que muitos autores e especialistas conservadores defendem que toda a tradição liberal – incluindo todos os liberais “clássicos” do laissez-faire, como Frédéric Bastiat e Lord Acton – abraça uma ideologia política totalmente incompatível com a noção de uma ordem moral superior.
O cientista político da Universidade de Notre Dame Patrick Deneen, por exemplo, faz esta afirmação num livro de 2018 – apropriadamente criticado por Allen Mendenhall aqui.
Mas esta posição é resumida de forma mais sucinta num ensaio do conservador M. Stanton Evans, de 1964:
O libertário, ou liberal clássico, tem como característica negar a existência de uma ordem moral centrada em Deus, à qual o homem deve subordinar a sua vontade e razão. Alegando a liberdade humana como o único imperativo moral, ele é, por outro lado, um relativista, pragmatista e materialista completo. [Ênfase acrescentada].
Mais uma vez, não estamos falando apenas de um grupo de anarquistas fumadores de erva. Evans está atacando explicitamente os liberais clássicos em geral, o que naturalmente inclui libertários de todos os tipos.
Presumivelmente, então, temos de aplicar a crítica de Evans a toda a gama de liberais clássicos, incluindo os jeffersonianos, os jacksonianos, os liberais britânicos, os liberais franceses e numerosos outros grupos que historicamente abraçaram o laissez-faire em bases liberais.
A narrativa geral aqui adotada por Evans mantém-se praticamente inalterada ao longo das décadas em alguns círculos conservadores: todos os tipos de liberalismo são imorais e perigosos, dizem-nos, e de John Locke a John Stuart Mill, a tradição liberal clássica é aquela que conduz à destruição da civilização ocidental. Isto porque – para usar as palavras de Evans – “nega caracteristicamente a existência de uma ordem moral centrada em Deus”.
Mendenhall aborda esta questão na sua crítica a Deneen, demonstrando que, a nível teórico, não há nada de “característico” no liberalismo clássico que o torne materialista ou contrário à noção de Evans de uma ordem moral adequada.
O historiador Ralph Raico também se debruçou sobre esta questão a nível teórico, abordando especificamente a acusação de Evans na New Individualist Review em 1964.
Mas também deve ser enfatizado que esta posição que exonera o liberalismo da sua alegada tendência antirreligiosa não é meramente um revisionismo idiossincrático a posteriori, ou a posição de alguns excêntricos.
Pelo contrário, podemos encontrar numerosos exemplos de importantes teóricos e praticantes liberais que não eram apenas vagamente “religiosos”, mas eram explicitamente cristãos.
A aparente compatibilidade entre liberalismo e religião – que, na prática, significa cristianismo – não é meramente teórica, mas é aparentemente um fato aceito pelos próprios liberais. Ou seja, os estudos de casos históricos também ajudam a ilustrar o erro da tese de Evans.
Em resposta à acusação de que os liberais clássicos consistentes não podem ser religiosos, Raico afirma:
Isto é falso, evidentemente, no que respeita aos muitos liberais que eram cristãos (por exemplo, Ricardo, Cobden, Bright, Bastiat, Madame de Stael, Acton, Macaulay etc.). De fato, muitos liberais clássicos (incluindo os actuais) sentiram que a ligação entre as suas opiniões políticas e religiosas e éticas era muito íntima. Frédéric Bastiat, por exemplo, que, devido à sua “superficialidade” e “optimismo superficial”, é por vezes considerado o exemplo paradigmático de um liberal clássico, exprimiu-se da seguinte forma no final de uma das suas obras mais importantes:
Há uma ideia principal que percorre toda esta obra, que permeia e anima cada página e cada linha; e essa ideia está incorporada nas palavras iniciais do Credo Cristão – EU ACREDITO EM DEUS.
John Bright foi o homem que, com Cobden, e durante vinte anos após a morte de Cobden, liderou a Escola de Manchester na política e no pensamento político e econômico britânicos – certamente um liberal típico, se é que isso existe. No entanto, a seguinte caracterização de Bright, feita pelo seu biógrafo mais autorizado, dificilmente parece compatível com a descrição [de Evans]:
O sentimento religioso, na sua forma mais simples, foi a base da sua vida. Foi sempre um Amigo [i.e., Quaker] antes de tudo; e um servo de Deus; um homem de profunda devoção, embora cada vez mais silenciosa.
Embora os cristãos fossem provavelmente, e os teístas certamente, a maioria, é verdade que um certo número de liberais era ateu ou (muito mais frequentemente) agnóstico: J. S. Mill, Herbert Spencer, John Morley etc. No entanto, há que salientar o seguinte: (a) a negação de uma “ordem moral centrada em Deus” não foi mais característica do liberalismo clássico do que a sua afirmação; (b) mesmo que uma maioria de liberais tivesse sido ateia e agnóstica, a ligação é, até agora, acidental e historicamente condicionada, e não lógica; (c) supondo que a maioria dos liberais estivesse contaminada pela descrença, de uma forma ou de outra, Evans continua a não apresentar razões para rejeitar o liberalismo de escritores cristãos como Bastiat.
Raico não menciona os homólogos americanos de Cobden e Bright: os Jacksonianos e os Democratas de Samuel Tilden e Grover Cleveland. Como observou Murray Rothbard, os democratas desse período eram os proponentes do laissez-faire e os herdeiros da tradição jeffersoniana. Mas os democratas liberais americanos do século XIX não eram de modo algum animados pelo ateísmo, pelo relativismo moral ou pelo materialismo, exceto em algumas franjas do movimento. De fato, os democratas dessa época atraíram em grande número imigrantes luteranos e católicos e – mais tarde no século – também imigrantes católicos irlandeses.1
Longe de destruir uma “ordem moral centrada em Deus”, os liberais americanos do século XIX eram profundamente moralistas, ao mesmo tempo que promoviam uma ordem social que era cristã, de classe média e, em muitos aspectos, vitoriana.
O mesmo se passou com os liberais britânicos de Cobden e Bright.
Também não encontramos grande ajuda para a tese de Evans quando olhamos para França.
É verdade que os gigantes do liberalismo francês, como Alexis de Tocqueville e Benjamin Constant, não eram homens especialmente devotos. Mas também é verdade que tanto Tocqueville como Constant, nas palavras de Raico, “olhavam para a fé religiosa para ajudar a causa da liberdade”. Para estes homens, “a fé religiosa aparecia como um aliado bem-vindo – de fato, um aliado indispensável”. Aparentemente, não conseguiram encontrar qualquer conflito inerente entre o liberalismo e a fé cristã que promoviam como um baluarte contra o despotismo.2
Mas esta “aliança” entre o liberalismo e a religião não se limitava à utilização da religião como um mero instrumento contra o estado. A escola de liberais católicos – que não deve ser confundida com os “católicos liberais” de hoje – procurou deixar bem claro que não havia conflito entre a prática do cristianismo e a promoção do liberalismo.
O principal destes liberais é o influente editor e legislador Charles de Montalembert – descrito por Gustave de Molinari como “o Cobden da liberdade religiosa” –, que negava a existência de uma ligação necessária entre o liberalismo e o relativismo moral. De fato, Montalembert não era de todo um relativista quando se tratava de controvérsias religiosas doutrinais e rejeitava explicitamente aquilo a que chamava “as doutrinas ridículas e culpáveis de que todas as religiões são igualmente verdadeiras e boas.”3
No âmbito da sua cruzada pela liberdade religiosa, os liberais católicos na França – incluindo Montalembert, mas também o frade dominicano Henri Lacordaire e o “beato” católico Frédéric Ozanam – procuraram separar o liberalismo francês do anticlericalismo fanático que alguns liberais, sob a influência dos revolucionários franceses, ainda mantinham.
Por que é que a caricatura de Evans dos liberais clássicos se mantém?
Parte do mal-entendido pode resultar do fato de muitos teóricos do chamado período do Iluminismo terem sido muitas vezes erradamente chamados liberais. De fato, no século XVIII, parecia que praticamente qualquer pessoa que se opusesse radicalmente ao status quo era rotulada de liberal. Mas esta oposição podia assumir muitas formas. Podia manifestar-se em noções utópicas da “vontade geral” democrática ou em ataques ao clero. Mas promover essas ideias não faz de ninguém um liberal. Isto tornou-se muito mais claro no século XIX, quando os partidos socialistas começaram a pôr em evidência a diferença entre ser positivamente a favor da liberdade política e ser meramente contra a ordem social vigente. O liberal clássico – e católico praticante – Lord Acton aludiu a este problema quando escreveu:
todas estas facções de opinião (na França pré-revolucionária) eram chamadas liberais: Montesquieu, porque era um conservador inteligente; Voltaire, porque atacava o clero; Turgot, como reformador; Rousseau, como democrata; Diderot, como livre-pensador. A única coisa em comum a todos eles é o desprezo pela liberdade.
Acton, evidentemente, compreendeu que as noções fantasiosas dos teóricos do Iluminismo não definiam a realidade do liberalismo tal como aplicado no mundo real, tal como os próprios liberais acreditavam. Dadas as experiências partilhadas por inúmeros liberais clássicos nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na França, é difícil chegar à mesma conclusão que Evans e os seus descendentes ideológicos conservadores. Embora alguns conservadores possam insistir que os liberais clássicos se opõem necessariamente a uma ordem social “centrada em Deus”, os fatos históricos sugerem o contrário.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute e republicado no Mises Portugal.
O ILC publica artigos, vídeos e outros conteúdos de autores que se identificam como cristãos e libertários. Esses conteúdos refletem diferentes opiniões, com as quais nem todos concordarão. Da mesma forma, nem todo conteúdo representa necessariamente uma posição 100% compatível com a visão oficial do ILC.