Instituto Libertário Cristão
Ralph Raico
[Esse artigo é uma seleção do primeiro capítulo do livro The Struggle for Liberty: A Libertarian History of Political Thought do historiador Ralph Raico, publicado recentemente pelo Mises Institute.]
O ponto crucial foi, mais uma vez, a Idade Média, e ali existia uma posição de confronto entre a Igreja e o estado que foi, de fato, fundamental. Isso remonta até antes da Idade Média, aos primeiros séculos da Igreja.
Um exemplo disso pode ser visto na pintura acima do artista flamengo Van Dyck, que retrata Santo Ambrósio impedindo o imperador Teodósio de entrar na catedral de Milão. Santo Ambrósio tomou essa atitude porque Teodósio havia sido responsável pelo massacre de inúmeros inocentes em Tessalônica, no leste do Mediterrâneo. Para Ambrósio, esse era um pecado do qual o imperador não havia se arrependido. Isso ocorreu por volta do final do século IV. A cena da pintura não acontece no grande Domo de Milão que conhecemos hoje, mas sim em uma catedral anterior. Santo Ambrósio era o arcebispo de Milão e também o responsável por converter Santo Agostinho ao cristianismo.
A pintura demonstra, de uma forma muito clara, que o arcebispo está ali em frente à porta e que o imperador Teodósio nunca havia passado por algo assim. Você pode ver que ele está furioso, totalmente frustrado: “O que essa igreja está fazendo para me impedir de entrar em um prédio do meu império?” Mas o imperador não tem permissão para entrar no prédio. Agora, esse é outro exemplo do conflito entre Ambrósio e Teodósio. Teodósio exigiu que Ambrósio entregasse a catedral ao imperador, e Ambrósio respondeu:
“Não nos é lícito entregá-la, nem a Vossa Majestade é lícito recebê-la. Por nenhuma lei é permitido invadir a casa de um cidadão comum — e pensas tu que a casa de Deus pode ser tomada à força? Diz-se que tudo é permitido ao imperador, que tudo lhe pertence, mas não sobrecarregues tua consciência com a ideia de que tens algum direito, como imperador, sobre as coisas sagradas. Está escrito: ‘A Deus, o que é de Deus; a César, o que é de César’. O palácio pertence ao imperador. As igrejas pertencem ao bispo.”[i]
Essa afirmação, aliás, vem do Novo Testamento: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Lord Acton, em um momento anterior de sua carreira, identificou essa frase como, na visão dele, a origem da ideia de liberdade, ou seja, a noção de que existe uma esfera que não pertence ao estado. Passa, então, a existir uma divisão entre o que é do estado e o que é de Deus, algo que não ocorria nas antigas civilizações, como a grega e a romana, especialmente durante o Império Romano tardio, que não faziam essa distinção entre o que pertencia ao estado e o que pertencia aos deuses. No final do Império Romano, os próprios imperadores eram considerados deuses.
Como mencionei antes, Ambrósio foi o responsável pela conversão de Santo Agostinho. E com Agostinho temos um desenvolvimento interessante em sua obra A Cidade de Deus. Esse pensamento ficou conhecido como a “dessacralização do estado”. No Império Romano, Roma era um deus com sacrifícios específicos e obrigações religiosas devidas a esse deus, representando o estado romano. Entre os sacrifícios – tipos de sacrifícios muito severos –, estavam os que você veria no Coliseu, sacrifícios dos inimigos de Roma de maneiras que nem mesmo são mostradas na Fox TV hoje. Mas o que Agostinho afirmou foi que essa é apenas Roma – algo como “Roma, tanto faz” – e que isso representa a cidade dos homens. Em contraste com essa cidade dos homens, o que realmente importa é a Cidade de Deus. É nela que está nossa morada verdadeira e eterna. A Cidade de Deus é infinitamente mais importante do que qualquer estrutura terrena, e com isso Agostinho retira do estado o status de entidade sagrada, coisa que os romanos até então lhe atribuíam.
Muito pode ser dito sobre essa posição de confronto e a relação hostil entre o estado e a Igreja Católica durante a Idade Média. Mas é importante lembrar que isso não se aplicava ao cristianismo de forma geral. No cristianismo bizantino, por exemplo, o estado predominava por meio do que se chamou de cesaropapismo. Essa era a situação em que a Igreja estava, em grande parte, sob o controle direto do imperador.
Essa característica era típica do cristianismo grego – e foi esse modelo que os russos herdaram. Assim, sob os governantes russos, os “czares” (título que eles adotaram), quem mandava de fato também na Igreja era o próprio estado. Era uma situação bem diferente daquela que se via na Europa Ocidental. E aqui voltamos àquela ideia de descentralização e divisão de poder, que foi tão importante por causa da existência de múltiplas entidades políticas pequenas e autônomas na Europa medieval.
Também foi muito importante a grande separação entre o estado e a Igreja, enquanto em outras civilizações o governante era considerado um deus. Podemos citar, por exemplo, o imperador romano, o faraó do Egito, o imperador do Japão, que era tido como descendente direto da deusa do sol, ou ainda o imperador da China. No Ocidente, a situação era bem diferente. E isso pode ser observado de várias formas, especialmente no papel exercido pela Igreja.
Essas limitações medievais ao poder do estado são geralmente ignoradas hoje em dia, e é quase impossível convencer meus alunos de que a Idade Média não foi a chamada “Idade das Trevas”. Esse mito da “Idade das Trevas” talvez seja a maior – ou uma das maiores, junto com o mito da Revolução Industrial – fraude histórica promovida pelos humanistas do Renascimento e pelos filósofos iluministas franceses.
Uma coisa em particular que costumo dizer aos meus alunos é que, na Alta Idade Média, quando a filosofia escolástica já estava estabelecida, ensinava-se universalmente em todas as universidades – de Oxford a Salamanca, passando pela Universidade Jaguelônica de Cracóvia – que o príncipe estava sujeito à lei. O próprio governante tinha que obedecer à lei. Jacob Viner, grande historiador econômico e professor da Universidade de Chicago, menciona, por exemplo, uma referência à tributação feita por Santo Tomás de Aquino. Segundo Viner, Aquino trata a cobrança de impostos como um ato extraordinário por parte do governante, que era, na melhor das hipóteses, moralmente duvidoso.[ii]
Viner aponta para uma bula papal medieval, republicada todos os anos até o final do século XVIII, que ameaçava excomungar qualquer governante “que cobrasse novos impostos ou aumentasse os antigos, exceto em casos amparados por lei ou com permissão expressa do Papa”.[iii] Os papas não adotavam essa postura de confronto apenas por princípios abstratos. Era uma disputa real de um poder contra o outro. E foi bom para nós, no Ocidente, que existisse um poder capaz de equilibrar e conter o poder do estado, algo que não existia em outras civilizações. Mesmo assim, encontramos o próprio Tomás de Aquino falando sobre a tributação como algo provavelmente ilícito.[iv] Da mesma forma, essa bula papal afirma que os impostos seriam ilegítimos e proibidos, a menos que houvesse controle e aprovação papal.
[i] Ambrose to Marcellina, AD 385, em The Letters of S. Ambrose, Bishop of Milan (Oxford, 1881), pp. 133-34: “Por fim, veio a ordem: ‘Entregue a Basílica’. Eu respondi: ‘Não é lícito que a entreguemos, nem que Vossa Majestade a receba. Nenhuma lei pode violar a casa de um homem privado, e você acha que a casa de Deus pode ser levada embora? Afirma-se que todas as coisas são lícitas para o imperador, que todas as coisas são dele. Mas não sobrecarregue sua consciência com o pensamento de que você tem algum direito, como imperador, sobre as coisas sagradas. Não se exalte, mas, se quiser reinar por mais tempo, sujeite-se a Deus. Está escrito: ‘De Deus para Deus e de César para César’. O palácio é do imperador, as igrejas são do bispo. A você foi confiada a jurisdição sobre os edifícios públicos, não sobre os sagrados’. Mais uma vez, diz-se que o imperador cumpriu seu comando: ‘Eu também deveria ter uma basílica’; eu respondi: ‘Não é lícito que você a tenha. O que você tem a ver com uma adúltera que não está ligada a Cristo em um casamento legítimo?’”
[ii] Viner, Religious Thought and Economic Society, ed., Jacques Melitz e Donald Winch (Durham, NC: Duke University Press, 1978), p. 105.
[iii] De “In Coena Domini” (artigo 5), uma bula papal recorrente entre 1363 e 1770, escrita pela primeira vez por Urbano V e modificada por papas posteriores até o Papa Urbano VIII: “Todos os que estabelecerem em suas terras novos impostos, ou tomarem a iniciativa de aumentar os já existentes, exceto nos casos previstos pelo último, no caso de obterem a permissão expressa da Santa Sé”.
[iv] De maneira semelhante a Viner, o teólogo Ronald H. Preston conclui: “Aquino trata a tributação como um ato extraordinário de um governante e muito provável que seja moralmente ilícito; a presunção é de que a tributação não é uma medida rotineira e legítima apenas como último recurso”.Preston, Religion and the Ambiguities of Capitalism (Cleveland, OH: Pilgrim, 1993), p. 147.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
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