C A R R E G A N D O . . .

Instituto Libertário Cristão

Tom Woods & George Kalantzis

O artigo a seguir transcreve um episódio do podcast The Tom Woods Show, de 23 de julho de 2015, com George Kalantzis.

George Kalantzis (PhD, Northwestern University) é professor de teologia e diretor do Wheaton Center for Early Christian Studies no Wheaton College.

Woods: Eu recém terminei de ler o seu livro, Caesar and the Lamb [César e o Cordeiro], o qual eu inclusive acabei de apresentar ao público. Eu me interessei pelo livro por duas razões: uma pelo ponto de vista acadêmico, assim como você; mas, mesmo que nele você negue qualquer preocupação em tentar ligar sua pesquisa no livro aos eventos recentes, bem, eu não tenho tal hesitação. Eu realmente acho muito interessante que hoje, pelo menos no contexto da política americana, ache-se normal que o serviço militar seja de fato uma vocação cristã. Na minha opinião, essa abordagem poderia gerar uma polêmica com certa utilidade, embora eu saiba que como acadêmico você não goste da ideia de se aplicar o livro dessa forma. Mas eu gostaria que você soubesse, eu acho que meu público também vê essa aplicação útil da mesma forma que eu. 

Algo que eu achei interessante, justamente porque eu não sabia disso, é o que você escreve na introdução, e eu gostaria que você começasse por aí, abordando a maneira como os acadêmicos vem debatendo esse assunto ao longo dos anos. Eles não podem negar que os cristãos primitivos claramente não queriam servir no exército, mas eles vão negar o argumento por trás disso, que era – alguns estudiosos vão dizer que não é pelo pacifismo propriamente dito; que é devido apenas a certas peculiaridades do exército romano. Fale-nos sobre algumas dessas controvérsias e sobre onde seu livro se localiza nelas. 

Kalantzis: Sim, na academia, a discussão é se existe uma diferença entre a teoria e a prática. Mesmo na narrativa bíblica, no Novo Testamento, temos Jesus debatendo com soldados; temos Cornélio, que é um centurião, a quem Pedro vai logo no início da narrativa do livro de Atos, e assim por diante. Não se discute que todos os autores cristãos que se escreveram depois do quarto século eram contrários à participação cristã no exército. E eram quatro as razões pelas quais eles se opunham. A primeira é a reivindicação cristã de que Jesus é o Senhor, a qual não é simplesmente uma reivindicação pietista. Senhor, Kyrios, Dominus é na verdade ontológico para essa reivindicação. Significa algo. Se Jesus é o Senhor, seu contrário é que César não pode ser. 

A segunda, que geralmente deixamos passar, tem a ver com a religiosidade do exército romano – que se caracterizava por ser uma instituição muito religiosa. As pessoas ingressavam no exército a partir de um juramento religioso chamado sacramentum – o qual se parecia muito com o “sacramento” moderno, e era. Além disso, ao longo da carreira de 20-25 anos dentro do exército, as pessoas serviam sob os auspícios dos deuses. Os romanos iam para a batalha tendo oferecido sacrifícios antes da batalha, depois da batalha, e assim por diante. E quanto alguém saía do exército, a pessoa ainda tinha que fazer um juramento religioso desfazendo o sacramento. Trata-se, portanto, de uma religiosidade imbuída no exército. 

A terceira razão, é claro, é o sexto mandamento, “Não matarás” – o qual aparece não apenas em Êxodo 20, mas é também repetido por Jesus em Marcos 10 quando o homem rico vem a Jesus e diz, “O que eu deveria fazer para ter vida eterna?”. A primeira coisa que Jesus diz a ele, para ter vida eterna, é: “Não matarás”. E os cristãos levam isso muito a sério. 

E a quarta é aquela que geralmente ignoramos de forma quase que completa. Trata-se do mandamento dominical para amarmos uns aos outros, o qual está em Mateus 5:44. Jesus disse, “Não apenas você tem que amar seus inimigos, mas você tem que amá-los e orar por eles”. E os cristãos levaram isso muito, muito a sério. 

Agora, havia cristãos servindo no exército? Sem dúvida. Mas existe uma diferença entre a teoria dos cristãos e a prática, e é aí onde se localiza o debate acadêmico. Como se vê isso? Começa-se com a visão cristã: vê? Os cristãos estão nos exércitos, e, por conseguinte, nós tentamos extrapolar aquilo no que os cristãos acreditam. Ou começamos com aquilo em que os cristãos acreditam e tentamos explicar por que eles agem de forma diferente daquilo no que eles acreditam? 

Woods: Deixa-me avançar mais ou menos em 20 a 25% no seu livro, onde você apresenta uma forte questão para outros acadêmicos, que é, a fim avaliar de forma exata qual era a visão cristã, vejamos se podemos encontrar algum exemplo de cristãos sendo impelidos a servir no exército como uma vocação cristã ou como uma espécie de dever cívico. E você dá a resposta absolutamente à queima-roupa, afirmando que não existe um tal exemplo. 

Kalantzis: Certo, e essa foi uma das coisas que eu fiz nesse livro, eu li cada fragmento de material que temos – grego, latim, sírio, tudo – dos primeiros três séculos e meio. Não há um único escritor cristão – nem um sequer – que defenda o serviço militar como uma vocação pia e cristã. Nenhum. E isso foi de certa forma surpreendente para mim. Não há lugar para debate a esse respeito. Esse material está completamente perdido. 

Woods: Tudo bem. Agora eu quero tentar entender exatamente quais são os motivos da objeção cristã à participação nas forças armadas. Como você diz, há mais de um motivo, mas vamos começar com um com o qual todos os acadêmicos concordam, que é o caráter religioso do exército. O que exatamente se espera que os cristãos façam que violaria suas consciências? 

Kalantzis: Praticamente tudo. O sistema religioso romano permeava – durante aquele tempo, ao logo de todo o caminho – todos os aspectos da vida. Por exemplo, como eu já disse, um soldado entra nas fileiras militares oferecendo um juramento, um juramento aos deuses, um sacramento. E, com isso, era feito um sacrifício. Podia ser um incenso; podiam ser outras coisas. Esses sacrifícios eram para deuses pagãos, para deidades pagãs. Eles faziam um juramento para a águia de César, ou para o bem-estar de César, um juramento de lealdade a César na presença dos deuses, o que claramente os cristãos não podem fazer. 

Em segundo lugar, repetidas vezes ao longo do ano, o regimento ou as legiões ou os exércitos tinham que entrar em formação no campo e oferecer sacrifícios para os deuses como uma maneira romana de prometer fidelidade tanto a César quanto à pátria – Roma, o império, nesse caso –, mas também aos deuses. E eles sempre trazem os deuses como testemunhas disso. De novo, os cristãos não podem fazer isso. Por quê? Por que para os cristãos, Jesus é o Senhor. E, se Jesus é o Senhor, César não pode ser ao mesmo tempo Cossenhor ou Senhor Supremo sobre Deus. Assim, eles faziam sacrifícios para entrar, sacrifícios ao longo do ano. Ao marcharem para a batalha, quando isso acontecia – o que não era tão frequente como nós gostaríamos que fosse ou como os filmes mostram, mas havia sim ocasiões em que isso ocorria – os exércitos, as coortes, as legiões se colocavam em formação e ofereciam sacrifícios, verdadeiros sacrifícios aos deuses, a fim de que os deuses os protegessem. Orações eram também oferecidas. 

E tudo isso vai contra aquilo que significa ser um cristão, porque um cristão reconhecia, naquela época e ainda hoje, que há uma autoridade principal, um Senhor, que é Deus; e esse Senhor é Cristo. É, portanto, a ele que nós juramos lealdade. Nesse aspecto, escritores cristãos da época posterior ao quarto século, da transformação do império no quarto século, eles veem o juramento militar – ou qualquer outro senso de lealdade, eles estendem isso um pouco para a administração cívica também – como um juramento contrabatismal, como um juramento contra o batismo cristão da pessoa. E esse é o principal aspecto ao qual eles se opõem.  

Woods: Eu acho que muitas pessoas desconhecem quão difundido era o ritual religioso, tanto na Roma antiga quanto na Grécia antiga, em parte, porque na minha opinião o Iluminismo queria retratar as civilizações clássicas como se fossem um mini salão do século XVIII.  

Kalantzis: Certo.  

Woods: Onde eles não tinham o cristianismo, portanto, é provável que fossem inteiramente seculares, ou seus rituais e compromissos religiosos de fato não precisavam ser levados em consideração. Mas a religião era absolutamente dominante em ambas sociedades. E o que dizer sobre o caráter religioso da figura do próprio imperador? 

Kalantzis: Essa é uma excelente pergunta. No quarto século – em especial no quarto século antes e depois de Cristo, naquele ano de transição do início do império – depois da morte de Júlio César – temos que lembrar que, voltando na história, Júlio César foi elevado e declarado um deus pelo Senado. Bem, seu filho adotivo, Otávio, que passou a ser conhecido como Augusto, é agora o filho de um deus, certo? E esse é um título que se estende para as próximas cinco gerações, até o final do primeiro século quando passou a significar ‘deus vivo’. Dessa forma, a figura do próprio César é uma que os romanos viam como a de uma pessoa deificada. É importante destacar: os antigos não eram idiotas; eles apenas viviam em uma época antiga. Eles não esperavam que os Césares trouxessem chuva ou que fizessem as plantações florescerem. O que eles entendiam é o relacionamento em que esses seres – César, no caso – estão mais próximos dos deuses do que nós, as pessoas comuns.  

O segundo aspecto é que o próprio César é também o principal sacerdote, a principal autoridade religiosa, mesmo que ele não exercesse com frequência o direito de Pontífice Máximo. Ele era em si a principal autoridade religiosa do Império. Assim, na própria pessoa de César temos o auge da piedade, da religiosidade, da estrutura cívica; aquele que se conecta com os deuses, aquele que, ao menos em teoria, é capaz de interpretar o desejo dos deuses, uma personalidade contundente e poderosa.  

Woods: Tudo bem, agora que foi estabelecido o que, para mim, é indiscutível, vamos para a parte da sua tese que está mais suscetível à discussão, apesar de, como você mesmo diz, você tenha examinado as fontes e as tenha debatido em detalhes no seu livro. Vemos capítulo após capítulo dedicado a uma, duas ou três figuras. Vamos dar uma olhada nas fontes mais antigas sobre as quais você fala aqui após o Novo Testamento. Quero dizer, as fontes mais antigas em que eu consigo pensar são aquelas que você tem aqui. Você tem o Didache1. Você tem a primeira carta de Clemente, que foi escrita por volta do final do primeiro século. Temos Inácio de Antioquia. Nós estamos agora indo para o segundo século. E também, no segundo século, Justino Mártir2.  

Eu já li muito sobre isso, mas faz muito tempo, e eu não me lembro qual é a relevância desses documentos. Eu. Me recordo da analogia que Clemente fez, em Primeira Clemente, entre o exército romano e a Igreja; idealmente, sobre a disciplina que deve fazer parte de ambos e sobre o fato de que eles todos devem ter uma única forma de pensar, assim como no exército romano. Mas talvez você possa nos ajudar a entender como tais aspectos relacionam-se a essa questão.  

Kalantzis: O argumento que se apresenta com certa frequência é o de – por exemplo, vou voltar um pouco mais no tempo, lá no início em Paulo, quando ele fala que os cristãos devem colocar a armadura de Deus, e então prossegue descrevendo a aparência dessa armadura – aquela em que ele usa a linguagem militar, vê? Paulo emprega a linguagem, a imagem militar e, portanto, o serviço militar. A mesma coisa se vê em Clemente, quando ele diz “sejam como soldados; sejam fiéis. Em Primeira Clemente 37, ele expressou avidez como soldados sob o comando irrepreensível. E o argumento é que, porque o autor usa tal linguagem, porque essas fontes usam tal linguagem, eles, portanto, toleram o serviço militar. O que eu estou mostrando aqui ao contextualizá-los é que, na verdade não é isso, eles apenas usam a analogia das forças armadas, a analogia de um soldado, mas o que eles realmente estão dizendo é que os cristãos deveriam ser invariavelmente fortes e dispostos como uma unidade militar. Não aprova, a linguagem não aprova o serviço militar. Apenas se vale da analogia. 

Woods: Correto. Mas o que mais nós temos – quer dizer, quando eu penso no passado – o que Justino Mártir tem a dizer sobre tudo isso? Isto é, o que me lembro sobre Justino Mártir é seu interesse em reconciliar os filósofos clássicos com a revelação cristã. 

Kalantzis: Certo. O que estamos vendo nesse período de transição do segundo século em Clemente, em Justino, no Martyrdom of Policarp, é algo que é absolutamente inacreditável para os romanos e, com isso, para o mundo ao seu redor. E esse é o fato de os cristãos não apenas não lutarem, etc., mas eles também não terem medo de morrer. E esse aspecto é algo único nisso tudo. Eles não têm medo de morrer em testemunho de Cristo, de serem cristãos. E no seu Dialogue with Trypho, o que Justino fala é, “olha, esses cristãos estão dispostos a serem martirizados, a testemunhar, e, portanto, a morrerem”. No seu First Apology, Justino fala exatamente isso, que o cristianismo é uma transformação real de uma sociedade que entende o mundo aqui como a estrutura dominante para um mundo que é de Deus, mundo esse que acontece de estar aqui apenas por um período de tempo. E ele continua falando sobre como os cristãos vencem a animosidade – aqueles que são seus inimigos – vencem com seu amor, com suas boas obras, não por serem rebeldes. 

E essa é outra característica do cristianismo mencionada pelos escritores cristãos: os cristãos não se rebelam. Eles honram César, eles honram as autoridades seculares, mas não lhes obedecem fazendo o que não deveriam fazer ou não podem fazer, mas colocando-os no seu devido lugar. Assim, Justino e aquele período transformacional do segundo século se movimentam do entendimento clássico do que significa ser um cidadão para o que significa agora ser um cidadão cristão de um reino diferente com um rei diferente. 

Woods: Eu tenho interesse no que você tem a dizer sobre Tertuliano e Orígenes 3, ambos que, é claro, foram amplamente lidos e continuam a ser amplamente lidos; cada um deles teve suas brigas com a heterodoxia, digamos, mas quem – é claro, Orígenes, parece, estava bem ansioso para ser martirizado, se eu me lembro corretamente da história dele. Assim, eu tenho certeza de que ele se encaixa nisso de alguma forma. Mas porque eles escreveram tão abundantemente, eu gostaria que você nos dissesse algo a respeito do que eles tinham a dizer.  

Kalantzis: Tertuliano e Orígenes são exemplos maravilhosos disso, porque, como você disse, eles escreveram muito. Tertuliano é um convertido ao cristianismo. Ele é falante de latim e advogado em Cartago. Orígenes é falante de grego em Alexandria. Ele nasceu em uma família cristã. Os dois, portanto, vêm de contextos diferentes. Um vem de um contexto pagão; o outro vem de um contexto cristão.  

Tertuliano, que está em algum lugar em Cartago, com muita frequência escreve em um ambiente no qual o cristianismo está crescendo, mas é ainda uma minoria muito, muito pequena. Mas Tertuliano está disposto a dizer o que precisa ser dito. Ele fala sobre testemunhar como a postura apropriada para os cristãos. Por exemplo, há cristãos nos acampamentos próximos a onde ele vive, e eles marcham em formação. E um deles não usa a grinalda, que podemos considerar em nossos dias, ele se recusa a usar o pino de metal por causa da honra da unidade, segurando-o na mão como um sinal de que se recusa a aceitá-lo. E os demais cristãos na sua unidade dizem-lhe, “por que você está fazendo isso? Você vai trazer problemas para nós”. E Tertuliano relata o que ele disse. Tertuliano então toma o seguinte partido, “Quer saber de uma coisa? Como cristãos, nós precisamos defender quem somos e em que acreditamos, independentemente das consequências”. 

Tertuliano, então, vai falar sobre os cristãos como os soldados de Cristo, como ele os chamava. É ele quem que vai insistir para que os cristãos não se rebelem. Diferentemente de outras pessoas, quando rejeitam a autoridade de César, os cristãos não se rebelam. E o exemplo que podemos trazer aqui é, digamos, o de Pedro ou Paulo, os apóstolos, que, por um lado honram César. Por outro, eles se recusam a fazer o que César diz. Como eles honram César? Colocando César – e com isso, eu quero dizer a autoridade secular – no seu devido lugar e se recusando a obedecer ao seu comando. Então, como isso é honrar César? Justamente porque eles não se rebelam. E qual é a consequência? A consequência é que eles permitem que César os mate. E esse é um ponto central em toda a discussão: que honrar César – de novo, com isso queremos dizer o Estado – não significa obediência ao Estado. Significa que reconhecemos a autoridade do Estado inclusive as consequências da desobediência. Nós os honramos por não nos rebelarmos. 

Orígenes é o filho de um mártir. Seu pai foi preso e executado no final da adolescência de Orígenes, quando ele tinha mais ou menos 17. E ele passou o resto da sua vida nesse hiato entre o seu pai ter sido martirizado, o qual foi um defensor daqueles que por sua vez foram martirizados nos teatros do seu tempo, e ao final, o próprio Orígenes ser alvo de perseguição. O que Orígenes faz é mostrar de forma ainda mais profunda o que significa de fato ser um cristão. E o que ele faz é liderar a objeção pagã clássica aos cristãos, os quais se recusam a servir nas forças armadas.  

Celsus, o escritor pagão que escreveu mais ou menos duas gerações antes de Orígenes, criticou os cristãos. Celsus é o primeiro pagão, o primeiro não cristão, a levar o cristianismo a sério. Mas ele diz, “Ok, me explica isso, diz ele. Se eu aceitar seu (posso chamar de) posicionamento pacifista ou pacificador de não servir, por que você aceita os ganhos e os benefícios que César e seus exércitos lhe dão, que o Estado lhe dá, e recusa-se a servir com ele?”. E Orígenes diz, “Você entendeu errado. Você não reconhece que é Deus quem dá, e que são as orações dos cristãos que protegem o Estado, e não as legiões de César”. E ele continua, de forma exasperada pergunta, “O que aconteceria se todos no estado fizerem como os cristãos e se recusarem a participar?”. Para isso, Orígenes tem uma frase linda na qual ele diz, “se todos se comportassem como os cristãos, nós não teríamos inimigos”.  

Woods: (rindo) Nossa! Essa é uma resposta muito boa.   

Kalantzis: É bem direto, certo? Então, o que fazer com os bárbaros. Nós os transformamos em cristãos e daí não temos inimigos. E aí está. Mas essas são pessoas – o que nós temos que perceber é que essas são pessoas que estão dispostas a morrer por isso. E eles morreram. Orígenes foi martirizado, e muitos deles também. Eles foram mortos por sua fé, porque eles se recusaram a pegar em armas.  

Woods: Agora, onde vemos isso mais claramente manifesto? No fato de que você, como cristão, não pode participar das forças armadas. Nós alguma vez vemos isso enunciado em preto e branco, dessa forma, dirigido para a comunidade cristã? 

Kalantzis: Nas Escrituras ou nos escritos dos… 

Woods: Nos primeiros textos dos Pais. 

Kalantzis: Na verdade, nós vemos isso em muitos deles. Em Tertuliano, no OnIdolatry, On the Crown, ele escreve sobre isso. Mas inicialmente aparece, até de forma mais completa, na coleção de documentos chamada documentos da Ordem da Igreja. Trata-se de documentos que passaram por uma quantidade de edições da metade do segundo até o quarto século. Eles são cânones da Igreja, se preferir. São documentos que as igrejas têm. Quando uma pessoa vem e diz “Eu quero ser batizado”, eles dizem, “Ok, vamos fazer, então, a catequese. O que é essa fé cristã? Qual é a prática cristã?”.   

E esses são documentos que catalogam os tipos de profissões que os cristãos podem seguir ou que tipo de comportamento se espera deles. E eles têm catálogos inteiros sobre isso. Por exemplo, os cristãos não podem ser, dizem eles, donos de prostíbulos, certo? Você não pode ser um cristão e um dono de prostíbulo. Você não pode ser um cristão e ser um gladiador? Bem, há outras categorias nesse sentido que têm a ver com o paganismo, que têm a ver com matar. E uma lista inteira dessas categorias repetidamente diz que um cristão não pode estar no exército. 

E eles as separam em duas categorias. Eles separam, especialmente na parte final do terceiro século e início do quarto século, a categoria daqueles que se converteram ao cristianismo enquanto no exército. Para eles, esses documentos da ordem da Igreja dizem, “Se você vier para ser batizado e já esteve no exército ou você está no exército, então você não pode cumprir a ordem para matar. Você deve recusá-la. Se você não estiver disposto a recusar a ordem para matar, você não pode ser batizado na igreja”.  

E a segunda categoria é a daqueles que querem ser batizados na Igreja Cristã, e é essa a forma pela qual as pessoas se tornam cristãs, e depois vão servir nas forças armadas. Os documentos da Ordem da Igreja, a constituição apostólica, etc. têm palavras duras para essas pessoas. Eles dizem, “Mandem essas pessoas embora, porque elas fazem duas coisas: primeiramente, elas zombam de Deus. E em segundo lugar, elas mentem para o Estado”. Aí você diz, “Espera, espera, espera, espera. Como elas podem zombar de Deus e mentir para o Estado?”. Bem, eles mentem para o Estado porque dizem “Eu quero estar sob a suas ordens, mas eu não vou fazer o que você me diz para fazer; do contrário, eu não posso ser um bom cristão”. E eles mentem para Deus, eles zombam de Deus, porque eles dizem, “Por um lado, eu posso professar pelo batismo que Jesus é o Senhor, e, por outro, eu posso atravessar a rua e dizer que César é o Senhor”. Isso não pode acontecer. Assim, os documentos da Ordem da Igreja são a mais presente e clara declaração disso.  

Woods: Agora, só para encerrar, há duas coisas que mudaram nos séculos que se seguiram ao período que você está cobrindo, e uma delas vai um pouco além do escopo da nossa discussão, mas certamente uma coisa que mudou é que começamos a ver discussões do por que pode ser legítimo rebelar-se. Com certeza, no segundo milênio, vê-se poucas pessoas argumentado a esse respeito. Mas depois, aparentemente, em um dado momento, recebe-se uma certa validação do serviço militar como sendo digno de um cristão. Você poderia nos dizer como isso acontece?  

Kalantzis: Há um período de transição, um período muito rápido de transição, de tal forma que as pessoas daquele tempo pensaram que a Segunda Vinda de Cristo já havia acontecido, trata-se do reinado de Constantino, o Grande, no início do quarto século. É um tempo de transição entre o fim do terceiro século, no qual os cristãos, uma minoria – uma crescente minoria, mas ainda uma minoria – são perseguidos, ativamente perseguidos. A chamada Grande Perseguição da Igreja no início do quarto século termina não apenas com a legalização do cristianismo – agora depois de 313, o cristianismo é uma religião legal, ao invés de uma religião ilegal – mas também lentamente no quarto século, dos anos 320 para os 380, nesse período de 60 anos, passamos por uma transição de um império pagão para um império cristão. No ano 380, Teodósio I vai ser um imperador que não apenas é cristão, mas que agora vai fazer o cristianismo a única religião do império.  

Então em um espaço de tempo de três gerações, duas gerações, nós saímos de um império completamente pagão – e agora temos que pensar da Bretanha à Pérsia, certo? Aquela região inteira foi legalmente transformada em um ambiente cristão. Assim, a questão não é, bem, o estado pagão tem legiões, mas “Os cristãos podem tomar parte nelas?”. A questão agora é transformada em: o estado é cristão. “O que fazemos com as legiões que estão agora lutando sob o Labarum cristão, a Cruz cristã?”. Além disso, no ano de 416, Teodósio II – infelizmente eles têm o mesmo nome, o primeiro e o segundo – bane os pagãos do serviço militar. Agora em 416, os pagãos são banidos das forças armadas, e os militares são completamente transformados em cristãos. Todos foram batizados no império – quase todos foram batizados, e, portanto, é importante lembrar que se trata do início, no quarto século, do que nós chamamos de cristandade. Cristandade então como o reino de Cristo na terra com estruturas de estado é o que é o Império Romano transformado no Império Bizantino que, por sua vez, é transformado no Sacro Império Romano, e daí move-se para dentro da Alta Idade Média e assim por diante. 

Dessa forma, o que acontece é essa transformação não apenas de militar ou não militar, na verdade não importa, mas a transformação do próprio Estado de uma entidade para a qual os cristãos são um adjunto, da periferia se não das margens, em uma entidade na qual o cristianismo e os cristãos são o centro do poder. E, uma vez que o cristianismo se move das margens para o centro do poder, agora possui os problemas de estar no centro do poder. Depois do terceiro século, depois do quarto século, os cristãos poderiam apontar e dizer, “Você, Estado, – independentemente do imperador, não importa – você, Estado, está sob a autoridade de Deus, e nós cristãos vamos responsabilizá-lo para que esteja apropriadamente sob a autoridade de Deus, mas nós vamos estar à margem da discussão; você no centro pode determinar”. 

Agora, no espaço de três gerações, os papéis mudaram. Agora a cristandade, a Igreja, os cristãos não apenas dominam a sede do poder, eles dominam as estradas, eles dominam as fronteiras; eles dominam o sistema de tributação; eles dominam, então, as legiões. Assim, a questão agora mudou, e o que costumava ser a religiosidade do exército romano, o qual devia sua proteção a deuses pagãos agora, no final do quarto século mudou, e passou a dever sua proteção ao falecido Deus cristão. A prática não mudou. O que mudou foi o foco. Assim, quando, no terceiro século, soldados como uma legião ou como uma coorte se levantariam e ofereceriam um sacrifício a um deus pagão por proteção, agora três gerações mais tarde, a mesma coorte se levantaria no mesmo campo e ofereceria orações pedindo proteção. 

E, para muitos de nós, esse é um lugar e um tempo, o quarto século e o início do quinto século, em que tudo muda, todo o paradigma muda. Passa-se, então, para as discussões da Antiguidade Tardia para a Idade Média para os períodos da pré-Reforma, do pré-Iluminismo e do pós-Iluminismo. Assim, estamos olhando para trás, para todo o caminho dos anos da pré-cristandade a fim de se ver como os cristãos e o cristianismo eram antes de serem o centro do poder.  

Woods: Muito bem, me desculpa eu fico dizendo que vou te deixar ir, mas eu absolutamente preciso ainda falar um pouco mais sobre isso, porque parece que cria um problema na minha cabeça, porque eu entendo o que você está dizendo que agora. Primeiro, os elementos da sociedade romana e do exército romano que são ofensivos para os cristãos estão agora ausentes. Em segundo lugar, há uma questão prática de, bem, nós estamos no controle agora, então alguém precisa vigiar as fronteiras. 

Kalantzis: Sim. 

Woods: Ok, mas esse tipo de preocupação pragmática, eu acho, só aparece quando alguém está no comando, então eu vejo que isso não teria surgido antes; eles ainda teriam que lidar com o que, no seu livro, é o problema moral central de servir nas forças armadas, a saber, o derramamento de sangue. Vai haver derramamento de sangue, seja um império cristão, seja a cristandade, seja a Antiguidade Clássica, seja o que for; ainda vai haver esse problema moral principal. Assim, eles simplesmente passaram a ignorar isso? 

Kalantzis: Essa é uma pergunta absolutamente maravilhosa, e essa é uma transformação impressionante que acontece no quarto século. Ela ocorre quase dentro de uma geração. Agora, há pessoas que, ao longo desse período, observam o Sexto Mandamento e a ordem de amar seu inimigo, e os elevam e dizem, não, é isso o que significa ser um cristão; não podemos fazer isso. Assim, as vozes da pacificação não desaparecem. Mas a pragmática ofusca tudo, mesmo no final do quarto século Basílio de Cesareia – um dos bispos de Cesareia, um dos grandes bispos do cristianismo e teólogo – diz, aquele que esteve nas forças armadas, que esteve no exército não pode receber a eucaristia por três anos. Não se trata de uma punição; trata-se de um cuidado pastoral para com aqueles que estiveram no exército, aqueles que estiveram em batalhas. Não é que eles ignorem isso, é que os pragmáticos de repente passaram a dominar. 

Eu uso uma analogia muito, muito ruim – a maioria das analogias são ruins; essa é particularmente ruim, mas vou usá-la. É como um cachorro que está perseguindo um carro, certo? Ele vai atrás dele, e de repente o carro diminui a velocidade e ele agarra o pneu. Agora, o que se faz com isso? O cachorro não sabe dirigir o carro. Não pertence ao carro. O que se faz com isso? E o que acontece se o cristianismo estiver em crise de identidade no quarto século. Ambos os historiadores Lactâncio e Eusébio escreveram antes do advento de Constantino e durante o seu reinado. É possível vê-los virarem quase que imediatamente para uma exuberância milenar de que Cristo veio na face de Constantino, em nome de Constantino, e nós estamos no comando. Ok, e agora? E eles se silenciam.  

Woods: Essa é uma transição muito, muito interessante.  

Kalantzis: Sim.  

Woods: Eu não havia pensado sobre isso, realmente não sabia ou sequer me dei conta ou entendi até você falar sobre isso aqui. Nesse sentido, esse é um material muito, muito interessante. Obviamente, eu não preciso convencê-lo disso. O livro sobre o qual estamos falando é Caesar and the Lamb: Early Christian Attitudes on War and Military Service. Vou ligar o livro na página de notas do show para o Episódio 452, TomWoods.com/452. Vou ligar o episódio à tua página em Wheaton, assim as pessoas podem saber mais sobre você, e muito obrigada pelo seu tempo hoje. Muito, muito interessante.  

Kalantzis: Obrigado a você. Foi um prazer.

Este artigo é uma transcrição do episódio 452 de The Tom Woods Show.


O ILC publica artigos, vídeos e outros conteúdos de autores que se identificam como cristãos e libertários. Esses conteúdos refletem diferentes opiniões, com as quais nem todos concordarão. Da mesma forma, nem todo conteúdo representa necessariamente uma posição 100% compatível com a visão oficial do ILC.

Posts relacionados

Copyright © 2020

Todos os Direitos Reservados