Instituto Libertário Cristão
Jeffrey F. Barr
Os cristãos tradicionalmente entendem a famosa passagem “Deem, portanto, a César o que é de César; e a Deus, o que é de Deus1”, como se Jesus estivesse endossando o pagamento de impostos. Essa visão foi, pela primeira vez, exposta por St. Justin Martyr no capítulo XVII da sua Primeira Apologia, escreveu ele:
E em qualquer parte nós, mais prontamente do que todos os homens, nos esforçamos a pagar os impostos, os comuns e os não usuais, àqueles nomeados por vocês, conforme temos sido instruídos por Ele; pois, naquela época, alguns vieram a Ele e perguntaram-Lhe se se deve pagar tributo a César; e Ele respondeu, “Digam-me, de quem é a imagem inscrita na moeda?” E eles disseram, “é de César”.
A passagem parece ser importante e bem-conhecida pela primeira comunidade cristã. Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas narram o “Episódio do Tributo” praticamente verbatim. Até mesmo textos como o Dito 100 do Evangelho não canônico de Tomé [Saying 100 of non-canonical Gospel of Thomas] e o Fragmento 2 Recto do Evangelho de Egerton [Fragment 2 Recto of the Egerton Gospel] registram a cena, embora com algumas variações em relação do Cânon.
Contudo, dada a Sua resposta enigmática, estaria realmente Jesus querendo dizer aos Seus seguidores que dessem a Tibério César suporte financeiro (voluntária ou involuntariamente) – um homem, em cuja na vida pessoal era um pedófilo, um pervertido sexual e um assassino; um homem que, como imperador, declarou-se um deus, oprimiu e escravizou milhões de pessoas, incluindo o próprio Jesus? A resposta, sem dúvida, é: a interpretação tradicional, a favor do imposto no Episódio do Tributo está absolutamente errada. Jesus jamais quis que Sua resposta fosse interpretada como um apoio ao tributo de César ou a qualquer tipo de imposto.
Este artigo examina quatro perspectivas do Episódio do Tributo: o cenário histórico do Episódio; a estrutura retórica do próprio Episódio; o contexto da cena dentro dos Evangelhos; e finalmente como a própria Igreja Católica entendeu o Episódio do Tributo. Essas dimensões apontam para uma conclusão: o Episódio do Tributo não defende o argumento de que é moralmente obrigatório pagar impostos.
O objetivo deste trabalho não é apresentar uma exegese completa sobre o Episódio do Tributo. Pelo contrário, é o de simplesmente mostrar que a interpretação tradicional e a favor do imposto no Episódio do Tributo é completamente indefensável. A passagem de forma inequívoca não defende o argumento de que é moralmente obrigatório pagar impostos.
Em 6 A.D, os ocupantes romanos da Palestina impuseram um imposto de recenseamento sobre o povo judeu. O tributo não foi bem-recebido, e, por volta de 17 A.D., Tacitus narra no Book II. 42 of the Annals [Livro II. 42 dos Anais], que “Também as províncias da Síria e da Judeia, exauridas pelos encargos, imploravam por uma redução de tributos”. Uma rebelião contra os impostos, liderada por Judas, o Galileu, logo se seguiu. Judas, o Galileu ensinava que “a tributação não era melhor do que uma porta de entrada para a escravidão” e que ele e seus seguidores “tinham um compromisso inviolável com a liberdade”, reconhecendo apenas Deus como rei e governante sobre Israel. Os romanos combateram brutalmente, por décadas, os levantes. Dois dos filhos de Judas acabaram crucificados em 46 A.D., e um terceiro foi um dos primeiros líderes da revolta dos judeus de 66 A.D. O pagamento do imposto encapsulava, portanto, aspectos teológicos, políticos e filosóficos mais profundos: ou Deus e Suas leis divinas eram supremas, ou o imperador romano e suas leis pagãs eram supremas.
Essa tendência à rebelião contra o imposto correu por toda a Judeia durante o ministério de Jesus. Todos os três evangelhos sinóticos localizam o episódio imediatamente após a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, na qual multidões de pessoas proclamavam-No rei, como mostra Mateus ao dizer, “E quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou agitada e perguntava, ‘Quem é este?’. E a multidão respondia, ‘Este é Jesus, o profeta de Nazaré da Galileia”. Todos os três evangelhos concordam que essa cena ocorre perto da celebração da Páscoa, um dos dias de festa mais santos dos judeus. A Páscoa comemora a libertação dos israelitas da escravidão no Egito e celebra também a restauração divina dos israelitas na terra de Israel, terra então ocupada pelos Romanos. Os peregrinos judeus de toda a Judeia estariam se dirigido a Jerusalém em um fluxo intenso de pessoas para cumprir suas obrigações religiosas periódicas no templo.
Devido à massa de peregrinos, o procurador romano da Judeia, Pôncio Pilatos, tinha também temporariamente estabelecido residência em Jerusalém junto com uma multidão de tropas a fim de reprimir qualquer violência religiosa. No seu trabalho Pontius Pilate: The Biography of na Invented Man [Pôncio Pilatos: A Biografia de um Homem Inventado], Ann Wroe descreveu Pilatos como o comandante chefe, o magistrado chefe, e o chefe do sistema judicial, e acima de tudo, o chefe dos coletores de impostos do imperador. No Book XXXVIII of On the Embassy to Gaius [Livro XXXVIII da Embaixada para Gaius] Philo descreveu Pilatos como “cruel”, “excessivamente raivoso” e “um homem das mais ferozes paixões”, que tinha o “hábito de insultar pessoas” e de matá-las “sem julgamento e sem condenação” com “a mais grave desumanidade”. Apenas alguns anos antes do ministério de Jesus, a imagem de César por pouco não deu início a uma insurreição em Jerusalém quando Pilatos, na calada da noite, sub-repticiamente erigiu efígies do imperador na fortaleza Antônia, adjacente ao Templo judaico; a lei judaica proibia tanto a criação de imagens esculpidas e quanto a sua introdução na cidade santa de Jerusalém. Pilatos evitou um banho de sangue apenas com a remoção das imagens.
Em suma, Jerusalém teria sido um viveiro de fervor religioso e político, e é nesse contexto que o Episódio do Tributo se deu.
[15] Então os fariseus saíram e começaram a planejar um meio de enredá-lo em suas próprias palavras. [16] Enviaram-lhe seus discípulos juntamente com os herodianos que lhe disseram: “Mestre, sabemos que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. Tu não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens. [17] Dize-nos, pois: Qual é a tua opinião? É certo pagar imposto a César ou não?” [18] Mas Jesus, percebendo a má intenção deles, perguntou: “Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à prova? [19] Mostrem-me a moeda usada para pagar o imposto”. Eles lhe mostraram um denário, [20] e ele lhes perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?” [21] “De César”, responderam eles. E ele lhes disse: “Então, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. [22] Ao ouvirem isso, eles ficaram admirados; e, deixando-o, retiraram-se. (Mateus 22:15-22)
Todos os três evangelhos sinóticos abrem a cena com uma conspiração para armar uma cilada para Jesus. Os que O estão questionando começam com o que eram, na sua cabeça, elogios falsos – “Mestre [ou Professor ou Rabi], sabemos que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade”. Como David Owen-Ball defende de forma vigorosa em seu artigo de 1933, Rabbinic Rhetoric and the Tribute Passage [Retórica Rabínica e a Passagem do Tributo], essa declaração inicial é também um desafio à autoridade rabínica de Jesus; trata-se de uma pergunta halacá [halakhic] – uma pergunta a respeito de um aspecto da lei religiosa. Os fariseus acreditavam que eles, e somente eles, eram os que tinham autoridade para interpretar a lei judaica. Ao apelarem à autoridade de Jesus para interpretar a lei de Deus, os autores das perguntas atingiram dois objetivos: (1) eles forçam Jesus a dar uma resposta à pergunta; se Jesus se recusar, Ele perde credibilidade como Rabi justamente diante das pessoas que há pouco O haviam proclamado Rei; e (2) eles forçam Jesus a tomar as Escrituras como base para a sua resposta. Eles, dessa forma, estão testando o conhecimento que Jesus tinha das Escrituras, esperando, assim, desacreditá-Lo se Ele não conseguir se desvencilhar desse questionamento, à primeira vista, insolúvel. Como observa Owen-Ball, “Os autores dos evangelhos descrevem, portanto, a cena na qual os interrogadores de Jesus O haviam encurralado. Ele é atraído a assumir, ilegitimamente, a autoridade de um Rabi, enquanto, ao mesmo tempo, é coagido a responder de acordo com os ditames da Torá”.
Os interrogadores fazem, então, a sua maldosa e brilhante pergunta: “É certo pagar imposto a César ou não?” Ou seja, é lícito, sob a Torá, pagar impostos aos romanos? Em algum momento, Jesus deve ter levado seus questionadores a crerem que Ele se opunha ao tributo; se não fosse assim, seus questionadores nem teriam feito a pergunta. Como John Howard Yoder argumenta no seu livro The Politics of Jesus: vicit Agnus noster [A Política de Jesus: vicit Agnus noster], “É difícil ver como a pergunta sobre o denário poderia ter sido pensada por aqueles que colocaram-na como uma perigosa armadilha, a menos que o repúdio de Jesus quanto à ocupação romana fosse por eles considerado incontestável, de tal forma que se pudesse esperar de Jesus uma resposta que lhes permitiria denunciá-Lo”.
Se Jesus disser que é lícito pagar o tributo, Ele teria sido visto como um colaborador dos ocupantes romanos e afastaria o povo que há pouco O havia proclamado um rei. Se Jesus disser que o tributo é ilegítimo, Ele arriscava ser rotulado como um criminoso político e a sofrer a ira de Roma. Em qualquer uma das respostas, provavelmente alguém O mataria.
Jesus imediatamente reconhece a armadilha. Ele expõe a hostilidade e a hipocrisia dos Seus questionadores e reconhece que Seus interrogadores O estão desafiando a entrar na batalha momentânea da política judaico-romana.
Ao invés de lançar-se na discussão política, Jesus, contudo, curiosamente pede para ver a moeda do tributo. Não é necessário que Jesus tenha a moeda para responder à pergunta deles. Ele certamente poderia respondê-la sem ver a moeda. O fato de Ele pedir para vê-la sugere que há algo significativo a respeito da própria moeda.
No Episódio do Tributo, os interrogadores apresentam um denário. O denário consistia em mais ou menos 1/10 de uma onça troy (naquela época, mais ou menos 3.9 gramas) de prata e em aproximadamente o valor do salário de um dia de um trabalhador comum. O denário era uma moeda notavelmente estável; os imperadores romanos mantiveram o seu valor; Nero, contudo, foi quem deu início à depreciação feroz da moeda.
O denário em questão teria sido emitido pelo imperador Tibério, cujo reinado coincidiu com o ministério de Jesus. Onde Augusto emitiu centenas de denários, Ethelbert Stauffer, na sua obra magistral, Christ and the Caesars [Cristo e os Césares], relata que Tibério emitiu apenas três, e desses três, dois são relativamente raros, já o terceiro é muito comum. Tibério tinha preferência por esse terceiro e o emitiu da sua própria fortuna ao longo de vinte anos. O denário era de fato propriedade do imperador, que o usava para pagar seus soldados, oficiais e fornecedores; a moeda trazia o selo imperial, diferenciava-se das moedas de prata emitidas pelo Senado romano e também era com ela que povos subjugados, em teoria, eram obrigados a pagar o tributo. Tibério chegou a tornar crime capital o ato de levar para um banheiro ou prostíbulo qualquer moeda que tivesse a sua imagem gravada. Em resumo, o denário era uma representação tangível do poder, da riqueza, da deificação do imperador e da subjugação a ele.
Os denários de Tibério eram cunhados em Lugdunum, hoje Lyons, na Gália. Daí J. Spencer Kennard, em um livro bem-elaborado, mas com edição já esgotada, intitulado Render to God [Deem a Deus], argumentar que a circulação do denário na Judeia era muito escassa. As únicas pessoas a usarem rotineiramente o denário para fazerem transações teriam sido soldados, oficiais romanos, e líderes judaicos em colaboração com Roma. Dessa forma, é de se salientar o fato de o próprio Jesus não ter a moeda. A rapidez com que os questionadores a apresentaram quando Jesus a solicitou implica que eles com frequência a usavam, tirando vantagem da generosidade financeira romana, diferentemente de Jesus. Além disso tudo, o Episódio do Tributo ocorre no Templo. Assim, ao apresentarem a moeda, os que interrogavam Jesus revelaram sua hipocrisia religiosa – eles carregavam consigo um item potencialmente profano, a moeda de um pagão, para dentro do espaço sagrado do Templo.
Por último, Stauffer e Kennard esclarecem de forma magnífica o fato de que as moedas no mundo antigo eram o maior instrumento de propaganda imperial, provendo agendas e divulgando os feitos dos seus emissores, em especial a apoteose do imperador. Como observa Kennard, “Para doutrinar os povos do império sobre a deidade do imperador, as moedas superavam qualquer outra mídia; afinal, elas iam a qualquer lugar e eram usadas por todas as pessoas. O seu simbolismo sutil inundava cada casa”. Embora o motor de propaganda de Tibério não fosse tão prolífico quando a máquina de propaganda de Augusto, todos os denários de Tibério anunciavam sua divindade ou seu débito a Augusto deificado.
Após ver a moeda, Jesus então apresenta uma contrapergunta, “De quem é esta imagem e inscrição?”. É importante também ressaltar que essa contrapergunta e sua respectiva resposta não são necessárias para responder à pergunta original sobre ser lícito pagar tributo a César. O fato de Jesus fazer a contrapergunta sugere que ela e a resposta para ela são significativas.
A contrapergunta é significativa por duas razões.
Primeiramente, Owen-Ball esclarece que a contrapergunta segue um padrão de retórica formal comum à literatura rabínica do primeiro século na qual (1) um forasteiro faz uma pergunta hostil a um rabi; (2) o rabi responde com uma contrapergunta; (3) ao responder à contrapergunta, a posição do forasteiro fica vulnerável ao ataque; e (4) o rabi então usa a resposta à contrapergunta para refutar a pergunta hostil. O uso que Jesus fez dessa estrutura retórica é uma forma para estabelecer a sua autoridade como rabi, nada diferente de como um advogado moderno usa a retórica legal, formal em um julgamento. Além disso, o objetivo da troca retórica é, em última instância, refutar a pergunta hostil.
Em segundo lugar, porque a pergunta hostil era um desafio direto à autoridade de Jesus como um rabi sobre um aspecto da lei, Seus questionadores esperariam que Jesus fizesse uma contrapergunta com base nas Escrituras, em especial, tomando a Torá como fundamento. Duas palavras, ‘imagem’ e ‘inscrição’, na contrapergunta, remontam a duas disposições centrais na Torá, o Primeiro (Segundo) Mandamento e a Shemá. Essas cláusulas caracterizam a base das Escrituras para esse aspecto da lei.
Deus Proíbe Imagens Falsas. O Primeiro (Segundo) Mandamento proíbe a adoração a qualquer pessoa ou a qualquer coisa a não ser a Deus, e proíbe também a fabricação de qualquer imagem de um falso deus para adoração, “[2] Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão. [3] “Não terás outros deuses além de mim. [4] “Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa…”. Deus exige a lealdade exclusiva do Seu povo. O uso que Jesus faz da palavra ‘imagem’, na contrapergunta, lembra seus questionadores sobre a exigência do Primeiro (Segundo) Mandamento para cultuar a Deus e sobre a concomitante proibição para criar imagens de falsos deuses.
A Shemá Exige Adoração Somente a Deus. O uso que Jesus faz da palavra ‘inscrição’ remete à Shemá, uma oração judaica baseada em Deuteronômio 6:4-9, 11:13-21 e em Números 15:37-41, e a mais importante oração que um judeu piedoso pode fazer. Ela inicia com as palavras “Shema Yisrael Adonai Eloheinu Adonai Echad”, as quais podem ser traduzidas como, “Escute, Oh, Israel, o Senhor é o nosso Deus – o único Senhor”. Essa frase de abertura enfatiza a adoração a Deus a ponto de excluir todos os outros deuses. A Shemá, então, ordena à pessoa a amar a Deus de todo seu coração, toda sua alma, e toda sua força. A Shemá exige também que os adoradores guardem as palavras da oração nos seus corações, para instruir as crianças nessas palavras, que eles as [palavras] amarrem em suas mãos e testas, e que as inscrevam visivelmente nas ombreiras das suas portas e nos portões de suas cidades. Judeus vigilantes tomam literalmente o mandamento de amarrarem as palavras nos seus braços e nas suas testas e usam tefilins, pequenas caixas de couro que contêm um pergaminho no qual estão inscritas certas passagens da Torá. Palavras da Shemá eram para estar metaforicamente inscritas nos corações, mentes e almas de judeus devotos e fisicamente inscritas em pergaminhos no tefilin, nas ombreiras das portas e nos portões das cidades. Tanto Mateus quanto Marcos relatam Jesus citando a Shemá no mesmo capítulo apenas alguns versículos antes do Episódio do Tributo. Essa proximidade reforça ainda mais a referência à Shemá no Episódio do Tributo. Por fim, é importante também ressaltar que, quando Satanás tenta Jesus ao oferecer-Lhe todos os reinos do mundo [romano] em troca da Sua adoração, Jesus repreende Satanás citando a Shemá. Em síntese, Jesus deseja chamar a atenção para a Shemá ao usar a palavra ‘inscrição’ na contrapergunta como Seu apelo à autoridade das Escrituras para a Sua resposta.
A resposta para a contrapergunta é significativa por duas razões.
Primeiramente, enquanto a resposta verbal para a contrapergunta sobre de quem eram a imagem e a inscrição na moeda é fraca, “de César”, a imagem e a inscrição propriamente ditas são muito mais reveladoras. A parte da frente do denário mostra um busto perfilado de Tibério coroado com os louros da vitória e da divindade. Até mesmo um espectador moderno imediatamente reconheceria que a pessoa retratada na moeda é um imperador romano. Circunscrito em torno de Tibério está uma abreviatura: “TI CAESAR DIVI AUG F AUGUSTUS” que significa “Tiberius Caesar Divi August Fili Augustus”, e traduz-se por “Tibério César, Filho Adorador do Deus Augusto”. No anverso da moeda está a deusa romana da paz, Pax, e circunscrita em torno dela está a abreviatura “Pontif Maxim” que significa “Pontifex Maximus”, e traduz-se por “Sumo Sacerdote”.
A moeda do Episódio do Tributo é um refinado exemplo da propaganda romana. Ela [a moeda] impõe o culto à adoração ao imperador e ratifica a soberania de César sobre todos os que fazem transações com ela.
Na passagem mais ricamente irônica de toda a Bíblia, todos os três evangelhos sinóticos retratam o Filho de Deus e o Sumo Sacerdote da Paz, recém-proclamado Rei pelo Seu povo, segurando uma pequena moeda de prata de um rei que diz ser filho de um deus e sumo sacerdote da paz romana.
A segunda razão pela qual a resposta é significativa é que, na sequência do padrão da retórica rabínica, a resposta expõe a posição hostil dos interrogadores para atacar. É importante também destacar que a resposta dos questionadores à contrapergunta de Jesus sobre a imagem e a inscrição na moeda tem pouca relevância para a sua primeira pergunta no que diz respeito à licitude em se pagar o tributo. Jesus certamente poderia responder à pergunta original sem a resposta deles à Sua contrapergunta. Mas a função retórica da resposta para a contrapergunta é a de demonstrar a vulnerabilidade da posição do oponente e de usar a resposta para refutar a pergunta original e hostil do oponente.
No Episódio do Tributo, somente depois de fazer e de responder à contrapergunta é que Jesus dá uma resposta à pergunta original. Ele diz aos seus questionadores, “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Essa resposta suscita a questão sobre o que é licitamente de Deus e o que é licitamente de César. Na tradição hebraica, tudo, por direito, pertence a Deus. Ao usar essas palavras, “imagem e inscrição”, Jesus já havia lembrado Seus interrogadores de que a Deus se deve lealdade exclusiva, total amor e adoração. Da mesma forma, economicamente tudo pertence também a Deus. Por exemplo, a terra física de Israel era de Deus, tal como ele instruiu em Levítico 25:23, “A terra [de Israel] não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês [os israelitas] são apenas estrangeiros, que se tornaram meus inquilinos”. Além disso, o povo judeu tinha que dedicar as primícias, a primeira parte de qualquer colheita e o primogênito de qualquer animal, a Deus. Ao dar a Deus as primícias, o povo judeu reconhecia que todas as boas coisas vinham de Deus e que todas as coisas, consequentemente, pertenciam a Deus. Deus chega mesmo a declarar, “Minha é a prata e meu é o ouro”.
O imperador, por outro lado, também declarou que todas as pessoas e coisas no seu império por direito pertenciam a Roma. O denário informava a todos que o utilizavam para fazer transações que o imperador exigia lealdade exclusiva e, pelo menos, a aparência de adoração – Tibério alegava ser o filho adorador de um deus. Os ocupadores romanos serviam como um lembrete constante de que a terra de Israel pertencia a Roma. O tributo romano, pago com moeda romana, trazia a impressão sobre a população geral de que a vida econômica dependia do imperador. O pão e circo do imperador mantinham a ordem política. A propaganda na moeda atribuía até mesmo a paz e a tranquilidade ao imperador.
Com uma contrapergunta direta, Jesus habilmente destaca que as alegações de Deus e de César são mutualmente excludentes. Se a fé de uma pessoa está em Deus, então ela deve tudo a Deus; as alegações de César são necessariamente ilegítimas, e nada se deve a ele. Se, por outro lado, a fé de uma pessoa está em César, as alegações de Deus são ilegítimas, e deve-se tudo a César, no mínimo, a moeda que carrega a sua imagem.
A contrapergunta de Jesus simplesmente convida Seus ouvintes a escolherem a quem dariam sua lealdade. De forma impressionante, Ele escapou da armadilha através de uma inteligente manobra retórica; Ele, com autoridade, refutou a pergunta hostil de Seus oponentes ao basear Sua resposta nas Escrituras, e ainda assim, nunca responde de forma aberta à pergunta original que Lhe foi feita. Não é de se admirar que Mateus termine o Episódio do Tributo da seguinte forma: “Quando eles ouviram isso, ficaram maravilhados, e, deixando-o, eles partiram”.
Sedição sutil refere-se a eventos, ao longo dos evangelhos, que não eram ostensivamente insidiosos e não teriam diretamente ameaçado as autoridades romanas, mas que passavam mensagens políticas que as audiências judaicas do primeiro século teriam imediatamente reconhecido. Os evangelhos estão repletos de exemplos de sedição sutil. O fato de salientar esses aspectos não significa defender que Jesus Se via como um rei político. Jesus deixa isso explícito em João 18:36, em que Ele afirma que não é um Messias político. Preferivelmente, no contexto de sedição sutil, ninguém pode interpretar o Episódio do Tributo como um apoio de Jesus ao imposto. Pelo contrário, pode-se entender o Episódio como a oposição de Jesus aos ilícitos impostos romanos. Paralelamente ao Episódio do Tributo, três outras cenas dos evangelhos servem como exemplos de sedição sutil: (1) a tentação de Jesus no deserto; (2) Jesus caminhando sobre as águas; e (3) Jesus curando o geraseno2 endemoninhado.
Por volta de 200 A.D., o humorista satírico romano Juvenal lamentou que os imperadores romanos, mestres do mundo conhecido, de forma tênue mantivessem o poder político através da manobra “panem et circenses”, ou “pão e circo”, uma referência à prática antiga de obter a conivência dos cidadãos romanos ao fornecer de forma gratuita trigo e caros espetáculos circenses. César Augusto, por exemplo, vangloriava-se por alimentar mais de 100.000 pessoas a partir do seu celeiro pessoal. Ele também se exaltava por promover espetáculos extraordinários:
Por três vezes promovi shows de gladiadores sob meu nome e cinco vezes sob o nome dos meus filhos e netos; nesses shows por volta de 10.000 lutaram. *** Vinte e seis vezes, sob meu nome ou dos meus filhos e netos, eu proporcionei caçadas com animais da África nos circos, a céu aberto ou no anfiteatro; neles mais ou menos 3.500 animais foram mortos. Eu ofereci ao povo uma batalha naval, no local em frente ao Tibre onde o bosque de César está agora; o terreno foi escavado em 1.800 pés de comprimento, em 1.200 pés de largura, no qual trinta navios bicados – birremes ou trirremes –, mas muito menores, lutaram entre si; nesses navios mais ou menos 3.000 homens lutaram, além dos remadores.
Por volta do tempo de Jesus e do reinado de Tibério César, a doação de grãos romana alimentava sistematicamente 200.000 pessoas.
No início do ministério de Jesus, o Espírito levou-O ao deserto “para ser tentado pelo Diabo”. O Diabo desafiou-O com três testes. No primeiro, ele desafiou Jesus a transformar pedras em pão. No segundo, ele levou Jesus para o ponto mais alto do templo em Jerusalém e provocou-O a Se jogar dali para forçar os anjos a realizarem um resgate espetacular e miraculoso. Por fim, para a última tentação, “o Diabo levou-O a uma montanha muito alta, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo no seu esplendor e disse a Ele, “Tudo isso te darei, se prostrado me adorares”. O Diabo provocou Jesus a ser um rei do tipo pão e circo e ofereceu-Lhe domínio sobre o mundo terreno inteiro. Essas tentações são uma referência instantaneamente reconhecível do poder dos imperadores romanos. Jesus de forma determinada rejeita esse poder. A rejeição de Jesus ilustra que as coisas de Deus e as coisas de Roma/do mundo/do Diabo são mutuamente excludentes. A lealdade de Jesus era para com as coisas de Deus, e sua recusa ao poder metafórico de Roma é um exemplo dessa sedição sutil.
No início do Capítulo 6 do evangelho de João, Jesus realiza um milagre e alimenta 5.000 pessoas a partir de cinco pães; Ele então se recusa a ser coroado rei do pão e circo. Imediatamente após isso, João relata o episódio em que Jesus caminha sobre as águas, em meio a uma tempestade. Essa extensão de água era o Mar da Galileia, o qual, como João relembra a seus leitores, também era conhecido com o Mar de Tiberíades. Por volta de 25 A.D., Hedores Antipas construiu uma cidade pagã na margem ocidental do Mar da Galileia e batizou-a em honra ao imperador romano, Tibério. No tempo de Jesus, a cidade havia se tornado tão importante, que o Mar da Galileia passou a ser chamado de “Mar de Tiberíades”. Dessa forma, não só Jesus recusou-Se a ser coroado como um rei romano do pão e circo, mas Ele literalmente caminhou sobre os mares do imperador em um exemplo adicional da sedição sutil.
Marcos detalha o encontro de Jesus com o endemoninhado geraseno como outro exemplo de sedição sutil. O território dos gerasenos era uma localidade pagã, e o endemoninhado da história era excepcionalmente forte e amedrontador. Ao exorcizar o demônio, Jesus perguntou-lhe o seu nome. O demônio respondeu, “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. Jesus então expulsa-os e os manda para uma manada de porcos, a qual imediatamente lança-se ao mar. Os leitores do primeiro século estariam bastante familiarizados com o nome ‘Legião”. Naquele tempo, uma legião imperial era formada por aproximadamente 6.000 soldados. Assim, o demônio “Legião”, um agente do Diabo, era uma referência mais ou menos dissimulada aos ocupantes romanos da Judeia. Os porcos eram considerados animais impuros pela lei judaica; e o símbolo da Legião Romana que ocupava Jerusalém era o de um javali. Os ouvintes do primeiro século facilmente teriam entendido o simbolismo do fato de Jesus ter mandado a legião de demônios para uma manada impura de porcos, e a manada ter-se lançado ao mar. Dessa forma, a cura do endemoninhado geraseno é outro exemplo de sedição sutil.
No Episódio do Tributo, a resposta de Jesus é uma sedição sutil. Os ouvintes do primeiro século teriam imediatamente compreendido o que significava dar a Deus as coisas que são de Deus. Eles saberiam que as coisas de Deus e de César eram mutualmente excludentes. Nenhum ouvinte judeu tomaria de forma errada a resposta de Jesus como um endosso ao pagamento dos impostos César. Pelo contrário, Sua audiência teria entendido que Jesus via o tributo como algo ilícito. Na verdade, a oposição ao tributo era uma das acusações que as autoridades impuseram-Lhe no Seu julgamento, “Eles trouxeram acusações contra Ele dizendo ‘Encontramos este homem subvertendo a nossa nação; ele proíbe o pagamento de impostos a César e Se declara o próprio Cristo, um rei’”. Para a audiência romana, contudo, o pronunciamento de dar a César o que é de César parece boa, quase de apoio. Ela é, entretanto, uma das várias vinhetas de protesto político velado existentes nos evangelhos. Em resumo, o Episódio do Tributo é uma forma sutil de sedição. Quando vista nesse contexto, ninguém pode dizer que o Episódio defende o pagamento de impostos.
A Igreja Católica considera-Se a autoridade para interpretar a Sagrada Escritura. O Catequismo da Igreja Católica de 1994 “é uma declaração da fé da Igreja e da doutrina católica, atestada ou iluminada pela Sagrada Escritura, pela Tradição Apostólica e pelo Magistério da Igreja”. O Catequismo de 1994 instrui o fiel que é moralmente obrigatório que cada um pague seus impostos para o bem comum. (O que diz a definição de “bem comum” pode ser deixado para um debate diferente). O Catequismo de 1994 também faz referência e cita o Episódio do Tributo, mas NÃO usa o Episódio para apoiar a suposição de que é moralmente obrigatório pagar impostos. Em vez disso, o Catequismo faz referência ao Episódio apenas para justificar atos de desobediência civil. Ele faz referência à versão de Mateus para ensinar que um cristão deve se recusar a obedecer a uma autoridade política quando esta faz uma exigência contrária às exigências da ordem moral, dos direitos fundamentais das pessoas ou dos ensinos do Evangelho. Da mesma forma, o Catequismo de 1994 também cita a versão de Marcos para esclarecer que uma pessoa “não deveria submeter a sua liberdade pessoal de forma absoluta a qualquer poder terreno, mas somente a Deus Pai e ao Senhor Jesus Cristo: César não é ‘o Senhor’”. Segundo o Catecismo de 1944, portanto, o Episódio do Tributo representa a proposição de que um cristão deve sua lealdade a Deus e às coisas de Deus apenas. Se o Episódio do Tributo de forma inequívoca sustentasse a proposição de que é moralmente obrigatório pagar impostos, o Catequismo de 1994 não hesitaria em citá-lo por esse posicionamento. Que o Catequismo não interpreta o Episódio do Tributo como uma justificativa para o pagamento de impostos sugere que tal interpretação não é uma leitura oficial da passagem. Em resumo, até mesmo a Igreja Católica não trata o Episódio do Tributo como se Jesus endossasse o pagamento dos impostos de César.
O evangelho de João relata a cena de uma mulher flagrada em adultério, colocada diante de Jesus pelos fariseus para que pudessem “testá-Lo”, “a fim de poderem ter alguma acusação para trazerem contra Ele”. Quando questionado, “’Esta mulher foi surpreendida em ato de adultério. Na lei, Moisés nos ordena a apedrejar tais mulheres. E o senhor, o que diz?’”. Jesus parece estar limitado a apenas duas respostas: a restrita, resposta legalmente-correta dos fariseus, ou a resposta misericordiosamente-certa, moralmente-correta, abalando a autoridade de Jesus como um Rabi. Impressionantemente, Jesus nunca respondeu de forma explícita à questão apresentada a Ele; ao invés de fazê-lo, “Jesus inclinou-Se e começou a escrever no chão com o dedo”. Quando pressionado por seus inquisidores, Ele finalmente responde, “’Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar uma pedra nela’”, e, é claro, os fariseus envergonhados saíram, um por vez. Jesus, então, recusa-Se a condenar a mulher.
A cena da mulher flagrada em adultério e o Episódio do Tributo são semelhantes. Em ambos, Jesus é confrontado com uma pergunta hostil desafiando Sua credibilidade como um Rabi. Em cada uma, a pergunta hostil tem duas respostas: uma resposta que a audiência sabe ser moralmente correta, mas politicamente incorreta, e a outra resposta que a audiência saber ser errada, mas politicamente correta. Na cena da mulher flagrada em adultério, ninguém torce para Jesus dizer, “Apedrejem-na!”. Todos querem ver Jesus estendendo misericórdia à mulher. Da mesma forma, no Episódio do Tributo, ninguém espera que Jesus responda, “Paguem o tributo aos pagãos, opressores romanos!”. O Episódio do Tributo, assim como a cena da mulher flagrada em adultério, tem uma resposta “certa” – não é lícito pagar o tributo. Mas Jesus não pode dar essa resposta “certa” sem entrar em conflito com o governo romano. Pelo contrário, em ambos os relatos do evangelho, Jesus dá uma resposta perspicaz, mas em última instância ambígua, que expõe a hipocrisia dos Seus interrogadores ao invés de responder de forma explícita à questão subjacente proposta por eles. Seja como for, em cada exemplo, a audiência pode inferir a resposta certa embutida na resposta de Jesus.
Este artigo foi originalmente publicado no LewRockwell.com.
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