C A R R E G A N D O . . .

Instituto Libertário Cristão

Dr. Norman Horn

Há um tempo, eu postei um ensaio mais curto intitulado Leo Tolstoy e a não resistência. Escrevi um trabalho maior sobre o tópico (usando o ensaio anterior como base) e agora desejo compartilhá-lo com vocês na sua forma completa. Mais tarde, vou postar um trecho do livro de Tolstoy, O Reino de Deus Está em Vós, o qual pessoalmente acho fascinante. Pode ser difícil para nós atentarmos para o desafio de Tolstoy em relação à violência do mundo de hoje, mas, mesmo que nós não tomemos uma posição autenticamente pacifista, é uma mensagem que merece ser levada a sério. Que nós jamais pensemos que a morte de algumas pessoas a mais irá tornar a nossa vida melhor, que nós jamais acreditemos que a violência seja a resposta para os problemas do mundo.  

O escritor russo Leo Tolstoy é considerado um dos maiores romancistas de todos os tempos. Guerra e Paz e Anna Karenina têm inspirado milhões de pessoas ao longo do último século. Menos conhecido a respeito de Tolstoy, entretanto, é que a sua interpretação da ética cristã tem tido um profundo impacto sobre o mundo, especialmente no que diz respeito à não resistência e ao pacifismo. Neste artigo, irei examinar o desenvolvimento desses temas na filosofia de Tolstoy à medida que eles aparecem na obra O Reino de Deus Está em Vós

Leo Tolstoy nasceu em 1838, em uma família aristocrática. Ele era o filho do conde Nicholas Ilich Tolstoy e da princesa Marya Nikolayevna Volkonsky, cujo casamento foi uma negociação e de conveniência. A classe social significava tudo na Rússia do século XIX, e os Tolstoys faziam parte do alto escalão do poder. A genealogia de Leo incluía generais, diplomatas e ministros dos soberanos czaristas. Tolstoy desfrutou, portanto, dos privilégios da alta sociedade, como a possibilidade de frequentar uma universidade. Quando jovem, viveu uma vida extravagante e rebelde enquanto frequentava a Universidade de Kazan, esforçando-se com dificuldade a fim de encontrar um propósito na sua vida. Ele decidiu, então, entrar para o exército e ir para a guerra.  

Ver a realidade implacável da guerra motivou-o a escrever, e ele logo alcançou algum sucesso inicial com as suas publicações enquanto ainda estava no fronte. Ele se casou, finalmente, aos 34 anos e aquietou-se a fim de dar início à maior parte da sua carreira literária. Ele também passou a explorar novamente a religião e chegou a um entendimento sobre Deus, a Igreja, o Estado e sobre si mesmo. Foi durante esse período que ele refletiu a respeito dos escritos de anarquistas, tais como Pierre-Joseph Proudhon, e viu que a não resistência era o único meio para encontrar uma mudança que perdurasse.  

Em 1884, Tolstoy tornou públicas suas crenças na obra What I Believe, a qual foi imediatamente banida da Rússia por apresentar uma imagem negativa do Estado e da Igreja russa. Entretanto, o livro foi amplamente lido fora da Rússia e recebeu muita atenção, especialmente por parte daqueles que defendiam a não violência em outros países, como os Quakers, na América. Apesar do banimento, intelectuais religiosos e seculares russos fizeram circular cópias do livro e começaram a atacar as ideias de Tolstoy. Em 1894, Tolstoy publicou O Reino de Deus Está em Vós, o qual não só é uma explicação maior sobre suas crenças, mas também uma resposta aos seus oponentes. Ele escreve em O Reino sobre a nova crítica: “O governo não só tolerou como as encorajou [essas críticas sobre o What I Belive], de tal forma que a refutação do livro sobre o qual ninguém deveria saber coisa alguma chegou até mesmo a ser escolhido como tema de dissertações sobre teologia na Academia” (30). É claro que qualquer trabalho que criticasse o status quo estava inclinado a provocar medidas desesperadas.  

A Rússia de Tolstoy era um país dominado por uma classe de elite aristocrata, burocratas do governo, “heróis” militares e agentes religiosos. A classe camponesa era amargamente oprimida por manobras legais, tributação, recrutamento e por uma Igreja que legitimava a opressão. Uma aliança profana entre a Igreja e o Estado garantiu a farsa para impedir que os camponeses melhorassem as suas condições. Eu creio que isso afastou Tolstoy de um credo tradicional cristão, o que, para ele, acentuava o conformismo, o status quo e as doutrinas nas quais poucas pessoas de fato acreditavam. Tolstoy via a aliança Igreja-Estado como uma completa aberração e perversão do verdadeiro cristianismo, tendo como propósito manter a elite no poder e os pobres sustentando o bem-estar material dessa elite. Ele até mesmo rejeitou (não consistentemente, contudo) a noção de propriedade privada, ao menos da forma como era implementada pelo Estado naquele momento. Por outro lado, a concepção de cristianismo de Tolstoy tomava as palavras de Jesus com a máxima seriedade, elevando a ética do Sermão do Monte ao lugar de bem supremo.  

Tolstoy tinha horror a qualquer tipo de violência. Ele via especialmente o Estado e suas guerras como os principais inimigos da paz. Enquanto homens comuns interagem em um nível pacífico na maior parte do tempo, a guerra de forma muito rápida leva a paz e a prosperidade à ruína: 

Combatentes são o flagelo do mundo. Nós lutamos contra a natureza e a ignorância e contra obstáculos de todos os tipos para fazer menos dura a nossa vida miserável. Homens instruídos – benfeitores de todos – passam suas vidas trabalhando, buscando o que possa socorrer, o que possa ser usado, o que possa aliviar a sorte dos seus companheiros. Eles generosamente se dedicam à sua missão de utilidade, fazendo uma descoberta depois da outra, ampliando o domínio da inteligência humana, estendendo as fronteiras da ciência, acrescentando a cada dia uma nova provisão ao montante de saber, conquistando diariamente prosperidade, tranquilidade, força ao seu país. Explode a guerra. Em seis meses os generais já destruíram o trabalho de vinte anos de esforço, de perseverança e de genialidade. É isso o que se quer dizer com não cair no mais odioso materialismo (152). 

Tolstoy enxergou através do verniz de bondade que o Estado veste, através das suas promessas de proteção, de ordem e de justiça, aquilo que o Estado realmente é: violência institucionalizada, organizada. Dada sua exata natureza, o governo não pode reduzir a violência seja ela qual for. Tolstoy escreve: “A autoridade governamental, mesmo que de fato reprima a violência privada, sempre insere na vida dos homens novas formas de violência, a qual tende a se tornar cada vez maior na proporção da permanência e da força do governo (170)”. O governo aparenta expressar na sua face uma espécie de semblante de natureza voluntária, mas isso é uma fachada, uma vez que tudo aquilo que o governo é capaz de fazer é apenas fruto da coerção. “Todos os encargos devidos ao Estado, como pagamento de impostos, cumprimento das funções públicas, submissão a punições, exílio, multas etc., em relação aos quais as pessoas parecem se submeter voluntariamente, sempre estão baseados na violência corporal ou em sua ameaça (166)”.  

Ainda assim, as pessoas aceitam o estatismo como algo inevitável, até mesmo como algo correto e bom, apesar da opressão e da matança que o Estado perpetra. Nas palavras de Tolstoy, os homens sabem que o homicídio é errado, mas são tranquilizados pelos seus supostos superiores, os quais ocupam os gabinetes estatais, de que aquilo que eles fazem é moral, justo e bom. Eles veem essa inconsistência, mas acreditam que seja sua ignorância o que os impede de entender a contradição. “A própria brutalidade e a obviedade da inconsistência confirma essa sua convicção (304)”.  

Dessa forma, os homens foram iludidos pelo Estado a uma situação de submissão, especialmente no que diz respeito ao uso da força. Todos estão na condição hipnotizados, e como uma pessoa hipnotizada, eles irão agir de acordo com a ordem que receberem. O Estado influencia as pessoas de tal forma a elas perderem o poder de criticar as ações do Estado, e, portanto, elas passam a segui-lo onde ele as levar seja por exemplo, por regra ou por sugestão.  

Como a humanidade irá vencer o Estado leviatã? A resposta de Tolstoy foi o cristianismo, a absoluta dependência e a prática dos ensinamentos de Cristo. Tolstoy obteve seus princípios éticos fundamentalmente a partir do Sermão do Monte. Para ele, o cristianismo não era uma religião mística, mas uma “nova teoria de vida” (daí o subtítulo do livro O Reino de Deus está em vós). Jesus inaugurou uma nova teoria divina da vida, a qual “reconhece a vida não apenas na sua própria individualidade, e não em sociedades de individualidades, mas na eterna imortal fonte da vida – em Deus; e, para satisfazer a vontade de Deus, ele está pronto para sacrificar seu bem-estar individual, familiar e social”.   

O Estado emprega força para impor sua agenda e levá-la adiante, mas deveria um cristão responder na mesma moeda para melhorar sua situação ou deveria levar o cristianismo a outros? Tolstoy apelou para Mateus 5:39, “Não resistam ao perverso”, como o pináculo dos ensinamentos de Jesus e como o último recurso para se opor à violência. Ele trata as palavras de Jesus não como uma proposição teórica sobre a qual refletir e, de certa forma, com a qual concordar, mas como um mandamento realista e a partir do qual se pode agir. Na verdade, cada pessoa deve decidir sobre como responder quando é agredida: “As pessoas com frequência pensam que a questão da não resistência ao mal pela força é teórica, que pode ser negligenciada. Ainda assim, tal aspecto é apresentado pela própria vida a todos os homens, e exige algum tipo de resposta de cada homem que tem a capacidade de pensar (186)”.  

A vida cristã, para Tolstoy, era um desenrolar na direção da perfeição divina e é caracterizada por uma vida de amor pelos outros. Esse amor nos conduz não apenas a amar aqueles que nos amam, mas a amar nossos inimigos até ao ponto de praticar o pacifismo em uma situação de agressão, especialmente aquela exercida pelo Estado. Ele argumenta que não há outra maneira de interpretar Jesus e que qualquer outra forma de interpretação é incompatível com a mensagem do Evangelho. O cristão, portanto, não pode, de jeito nenhum, usar as ferramentas do Estado. Para Tolstoy, a teoria estatista da vida, que enfatiza a agressão em nome da ordem, era irreconciliável com a vida cristã. O Estado jamais foi e jamais será o Reino de Deus, de fato o Reino de Deus torna o governo irrelevante. “Nenhum homem honesto e sério dos nossos dias pode evitar reconhecer a incompatibilidade entre o verdadeiro cristianismo – da doutrina da humildade, do perdão às ofensas e do amor – e o governo, com sua pompa, atos de violência, execuções e guerras (237)”.  

Tolstoy diria que o cristianismo é a única opção racional para a paz – e que sempre foi tal opção. Nos dias de hoje, os ensinos de Jesus tornaram-se evidentes até mesmo na prática, uma vez que todos os esforços dos Estado para responder à violência com violência têm progressivamente tornado o mundo pior. A teoria da vida do Estado exige violência para se manter, o que somente redunda na escalada da própria violência. Ele mesmo preventivamente dá uma resposta à estratégia da “garantia de destruição mútua” como forma de manter a paz na presença de armas de destruição em massa:

Com frequência se diz que a invenção das terríveis armas de destruição irá colocar um fim à guerra. Isso é um erro. À medida que os meio de exterminação são aprimorados, os meios para reduzir à submissão os homens que adotam a concepção de vida segundo o Estado podem ser igualmente aprimorados para se adequarem. Eles podem massacrá-los aos milhares, aos milhões, eles podem despedaçá-los, ainda assim eles irão marchar para a guerra como gado sem qualquer utilidade. Alguns vão precisar de uma sura para se mexerem, outros ficarão orgulhosos de irem [à guerra] se lhes for permitido usar um pedaço de fita ou uma renda dourada (206)”.  

Mas como alguém poderia adotar esse ensinamento quando está vivendo em uma era de Estado totalitário? Tolstoy simplesmente responderia: desista da sua antiga forma de vida, da sua antiga maneira de pensar, da sua aliança com tudo, menos com a fonte da vida, e viva sem hipocrisia. “Um homem apenas precisa se apropriar dessa teoria de vida para que os grilhões que pareciam tão indissociavelmente construídos sobre ele caiam por si mesmos, e para que ele se sinta absolutamente livre, exatamente como um pássaro se sentiria em um local cercado [se] ele imediatamente usasse suas asas (210)”. A compreensão cristã não está mais submetida “à condição do hipnotizado”. Mas esses cristãos transcendem aqueles que só querem um governo diferente; eles imediatamente irão agir como pessoas livres, apesar da opressão estatal, e, no final, o Estado deve cair. “Os inimigos revolucionários atacam o governo por fora. O cristianismo não o ataca de forma alguma, mas, por dentro, ele destrói todos os fundamentos sobre os quais o governo está estabelecido (231)”.  

Por que esse notável ensino ainda não se difundiu pelo mundo? Na verdade, foi difundido. Sempre houve cristãos desejosos de viver de forma consistente com os ensinos de Jesus, mas eles nem sempre são visíveis para nós. Acrescente-se a isso, diria Tolstoy, que a Igreja como uma instituição perverteu a mensagem de não resistência, às vezes deliberadamente escondendo dos cristãos a mensagem de Jesus. Mesmo que tenha pintado a Igreja russa do seu tempo de forma essencialmente negativa, ele mostrou que as igrejas ao longo da história haviam reprimido tal ética. Por que a igreja fez isso? Devido ao amor ao poder. A igreja estatal sempre deteve uma posição privilegiada, e os dirigentes da igreja sempre preferiram manter seu status ao invés de dizer a verdade. As ramificações dessa prática eram claras para Tolstoy; ele entendeu as guerras e a opressão do Estado como um resultado direto da recusa da Igreja a viver a mensagem de Jesus na qualidade de um novo caminho de vida. Entretanto, apesar de uma avaliação excessivamente severa da Igreja enquanto instituição ao longo dos milênios, não se pode negar que as igrejas têm na verdade sido coniventes na legitimação da agressão contra outros. A retórica das igrejas evangélicas hoje, ao glorificarem a guerra no Iraque e no Afeganistão, confirma que esse comportamento continua (mesmo se não houvesse “igreja estatal”). A única solução é voltar para o ensino de Jesus, crendo nele de todo o coração, e praticar tal ensino consistentemente, sem reservas. Tolstoy pode não ter aceitado o cristianismo de credo tradicional, nem ter adotado dogmas tradicionais, mas sua fidelidade aos ensinos de Jesus é verdadeiramente admirável.  

Tolstoy acreditava que a mensagem pacífica de Jesus perduraria por intermédio da “loucura da pregação” (1 Coríntios 1:21), mas é impressionante ver os efeitos que as palavras de Tolstoy tiveram sobre o século XX. O Reino de Deus Está em Vós foi imediatamente banido da Rússia no momento da sua publicação, mas teve uma influência de longo alcance em outros lugares. Mahatma Gandhi leu o livro e foi “inundado” pela sua mensagem, a qual influenciou significativamente sua revolução não violenta na Índia. Martin Green escreve: “Em Gandhi, o livro com certeza provocou uma explosão e o seu impacto naqueles ao seu redor espalhou-se como o bombardeio de partículas em uma montanha atômica, de tal forma que antes que a reação em cadeia tivesse terminado, o Império Britânico foi aberto e a Índia estava livre, sob a égide da não violência” (v). Através de Gandhi, Tolstoy influenciou Martin Luther King e o desenvolvimento não violento do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos.  

Compare esses dois homens de não violência com a história da Rússia, onde O Reino de Deus Está em Vós foi banido. Sete anos após a morte de Tolstoy, revolucionários violentos tomaram o controle do governo da Rússia e instituíram o comunismo – a Revolução Vermelha. O resultado foi a morte incalculável de milhões sob um dos regimes políticos mais terríveis que já existiu. Na verdade, o século XX poderia ser descrito como o século da guerra. Apesar dos impressionantes avanços na ciência, na engenharia, na medicina e nos negócios, o estatismo é a causa primária das incontáveis milhões de mortes fruto das guerras mundiais, das incontáveis intervenções militares e de regimes totalitários. Se ao menos Tolstoy tivesse sido ouvido, essas mortes desnecessárias poderiam ter sido evitadas.  

Tolstoy escreve com clareza e com uma paixão pela lógica que penetra o mais profundo da alma. Ele desafia o cristão contemporâneo a reconsiderar o uso da força a todo momento, a aceitar os ensinos de Jesus como a autoridade para a vida e a rejeitar o Estado. Muito pior do que um mal necessário, o Estado é um parasita desnecessário. Por fim, Tolstoy iguala uma acusação condenatória de complacência e inconsistência contra a Igreja de hoje, servindo como um lembrete para obedecer a Deus ao invés de obedecer aos homens.

Referências:

Leo Tolstoy. The Kingdom of God is Within You: Christianity Not as a Mystic Religion but as a New Theory of Life. Trad.: Constance Garnett. Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1984. 

Leo Tolstoy: The Centennial Anniversary. www.tolstoycentennial.com.

*Este artigo foi originalmente publicado no Libertarian Christian Institute.


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