C A R R E G A N D O . . .

Instituto Libertário Cristão

Jeffrey Tucker

Libertários não são invasores indesejados, mas, em vez disso, defensores do progresso contínuo no mundo que a própria Igreja Católica pretende servir e apoiar. 

Bem, é algo importante quando o Papa ataca o libertarianismo nominalmente. É ainda mais interessante quando meu editor de língua espanhola crê que o Papa, em um artigo acadêmico, estava a atacar a linguagem empregada por mim, em particular, ao sugerir, mas sem citar. 

Em uma determinada passagem, o Papa diz que o libertarianismo “enganosamente propõe uma ‘vida bela’”. A segunda edição de meu livro Beautiful Anarchy [em português, A Bela Anarquia: Como Criar Seu Próprio Mundo Livre na Era Digital], acabou de sair em espanhol (a língua nativa do Papa), com vendagem forte. Não é exagero que meu livro tenha sido apontado, mas ao lê-lo, você mesmo poderá decidir. 

Quando a igreja, na Idade Média, anatematizava pontos de vista, os Papas eram especificamente cuidadosos em citar as obras em questão, de modo que não houvesse confusão acerca do que estava sendo condenado (ver, por exemplo, o Catecismo do Concílio de Trento). Isso não é mais assim. Temos de adivinhar a identidade do interlocutor e o Papa está, desse modo, livre para descaracterizar. 

Ademais, só desejo que a crítica do Papa tenha algum conteúdo substantivo com que eu tenha de lidar. Os libertários sempre estão a postos para um bom desafio. Infelizmente, essa afirmação, muitas das vezes, equivale a uma caricatura. 

Eis aqui o contexto completo do que o Papa Francisco disse: 

Por fim, não posso deixar de falar dos sérios riscos associados à invasão, nas altas esferas da cultura e da educação, tanto nas universidades quanto nas escolas, das posições de individualismo libertário. Uma característica comum desse paradigma falacioso é minimizar o bem comum, ou seja, o “viver bem”, a “boa vida” na estrutura da comunidade e exaltar o ideal egoísta que enganosamente propõe uma “vida bela”. 

Se o individualismo afirma que só o indivíduo é quem dá valor às coisas e aos relacionamentos interpessoais e, portanto, é somente o indivíduo quem decide o que é bom e o que é mau, então o libertarianismo, que hoje está em voga, prega que para instituir a liberdade e a responsabilidade individual é necessário recorrer à ideia de “auto-causalidade”. Assim, o individualismo libertário nega a validade do bem comum porque, por um lado, supõe que a própria ideia de “comum” sugira a constrição de, ao menos, alguns indivíduos e, por outro lado, que a noção de “bem” prive a liberdade de sua essência. 

A radicalização do individualismo em termos libertários e, portanto, antissociais, leva à conclusão de que todos têm o “direito” de se expandir tanto quanto permitirem as capacidades, até mesmo à custa da exclusão e marginalização da maioria mais vulnerável. Laços têm de ser cortados visto que limitariam a liberdade. Por erroneamente identificar o conceito de “laço” com o de “limitação”’, os sujeitos acabariam por confundir o que poderia condicionar a liberdade – as limitações – com a essência da liberdade criada, ou seja, os laços e as relações, familiares e interpessoais, com os excluídos e marginalizados, com o bem comum e, por fim, com Deus. 

Uau, isso parece ameaçador! 

Uma ideologia que afirme tais coisas seria, de fato, terrível. É difícil imaginar que tal ideologia possa se tornar “modismo”. Mas, é claro, o Papa só afirma essas coisas porque define o libertarianismo de um modo que o torna incrivelmente fácil atacar – um firme indicador de que a posição oposta foi apresentada da maneira incorreta. 

E, certamente, o que o Papa afirma que os libertários acreditam não só não é verdadeiro, como em alguns aspectos é, na verdade, o oposto do que os libertários acreditam. 

Permitam-me que ofereça a minha própria definição de libertarianismo. É a teoria política em que a liberdade e a paz servem melhor ao bem comum que a violência e o controle estatal, o que sugere, portanto, uma regra normativa: sociedades e indivíduos não devem ser incomodados nas suas associações e transações comerciais desde que não ameacem os outros. 

Estou quase certo que a maioria dos pensadores da tradição liberal ficariam felizes com essa definição. 

Será que esse ponto de vista é estranho ou exótico, perigoso ou radical, a ponto do surgimento de tal modo de pensar realmente constitua uma perigosa invasão na cultura? 

Creio que não. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, escreveu, em essência, isso na Suma Teológica (2,96,2): 

Por isso, ela [lei humana] não proíbe todos os vícios, de que se os virtuosos abstêm, mas só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se. E principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja proibição a sociedade humana não pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o homicídio, o furto e atos semelhantes. 

A Suma foi escrita no século XIII. Sua posição pela limitação do Estado e a defesa da liberdade humana (ainda que de modo inconsistente), marcou o início de uma nova era na filosofia, na lei e na teologia. Apontou a saída do período feudal, rumo ao surgimento do mundo moderno. As ideias agora chamadas de “libertárias” foram peças essenciais dos desdobramentos políticos que ocorreram nos 600 anos seguintes. 

O libertarianismo não é um ponto de vista político arcaico, particular e estranho; é a sabedoria destilada de uma tradição potente que abrange a experiência de várias culturas e do pensamento mais excelso dos pensadores mais sérios desde o final da Idade Média até o presente. 

O que há numa palavra? 

Parte do problema é a própria palavra “libertarianismo”. Parece ser um neologismo que indica uma nova invenção de décadas recentes, uma ideologia política exótica com estranhas doutrinas e pretensões, algo que levaria tempo para estudar e compreender. Como o que ocorre com qualquer grande tradição intelectual, é fácil pegar um pensador, uma afirmação, um livro ou uma postagem de internet e caricaturar o todo. Desde que esse seja o caso, os críticos têm uma vantagem: podem inventar qualquer descrição assustadora que quiserem e fazer parecer crível. 

De fato, o termo “libertarianismo” foi um tratamento do pós-guerra, necessário, pois o termo liberalismo parecia ter sido corrompido. Essa geração deliberou para resgatar a palavra liberalismo ao criar uma distinção entre o que acreditavam do que acreditavam os partidários do poder estatal. 

Dean Russell, em 1955, esteve entre os primeiros a sugerir a substituição, um novo sinônimo: 

Muitos nos chamamos de “liberais”, e é verdade que a palavra “liberal” outrora descreveu pessoas que respeitaram o individual e temiam o uso das coações de massa. No entanto, os esquerdistas agora corromperam esse termo, antes altivo, para identificarem a si mesmos e aos seus programas de mais domínio estatal da propriedade e de mais controle sobre as pessoas. Como resultado, os de nós que acreditam na liberdade, devem explicar isso ao nos denominamos liberais, explicar que nos pretendemos liberais no sentido clássico, incorrupto. Na melhor das hipóteses, isso é estranho e está sujeito a mal-entendidos. Eis a sugestão: os que dentre nós amam a liberdade, registremos e reservemos para nosso uso próprio a palavra boa e honrada: “libertário”. 

Um problema que não foi previsto com essa estratégia de linguagem foi o corte inadvertido do novo libertarianismo de sua extensa e grande tradição liberal. Sejamos claros: quando falamos de libertarianismo, estamos falando sobre o sucessor e a personificação viva do liberalismo na tradição clássica. Compreendido desse modo, ele não parece tão bizarro. 

A Igreja e o Liberalismo 

Não só isso: o papel do catolicismo na história moderna é servir como benfeitor da causa liberal. Desde a época de Santo Tomás e seus sucessores, a Igreja Católica começou uma longa mudança das tendências constantinianas do primeiro milênio, livrando-se, aos poucos, da aspiração de unificação de Igreja e Estado e partindo para abraçar a tradição liberal emergente. Isso ocorreu primeiro na esfera dos bancos, quando a Igreja serviu de defensora da causa dos banqueiros Medici contra as forças reacionárias que tentaram parar o despertar da vida comercial moderna. Liberalizou a regra contra a usura, por exemplo, e defendeu os direitos de propriedade e as trocas comerciais entre as nações. 

O fim da escravidão foi, talvez, o maior triunfo do liberalismo antes do século XX e, aí, a Igreja Católica foi uma força a favor dos direitos humanos e da justiça muito antes que outros compreendessem isso. 

Os escritos de Bartolomé de las Casas, de 1547, por exemplo, continuam a inspirar pela paixão moral diante das atrocidades contra os direitos humanos perpetradas por muitos Estados. Nenhum dos antigos filósofos ousou imaginar um mundo de igualdade universal para todas as pessoas, mas a Igreja Católica o fez, com base na convicção de que todos os indivíduos são feitos à imagem e semelhança de Deus e, portanto, são merecedoras de determinados direitos. 

À tradição escolástica tardia do pensamento social católico, centrada na Espanha, foi atribuído, muitas vezes, o nascimento da própria ciência econômica. Isso porque esses acadêmicos não só eram idealistas morais; eram homens eminentemente práticos que buscavam compreender como funcionava o mundo real, todos interessados em entendender como as pessoas poderiam viver vidas melhores. Aos poucos descobriram que os interesses das pessoas individuais e o bem comum não conflitavam, mas ambos poderiam ser efetuados pela liberalização de todas as esferas da sociedade. 

A Igreja Católica nesses anos foi uma força em prol do progresso, ao dar voz para o surgimento do direito das mulheres. Essa é uma história complicada com altos e baixos, mas a linha de pensamento aqui vem da alta consideração dada à mãe de Jesus que, gradualmente, veio a defender uma visão de mulher muito diferente da existente na antiguidade. Até hoje, a igreja enaltece quatro mulheres como Doutoras da Igreja. 

Após a Reforma e a ascensão do nacionalismo, a Igreja – como uma instituição internacional representando interesses estáveis particularmente em estado algum – serviu como um bastião diante dos poderes incontestáveis dos príncipes, da visão agostiniana de que nenhum líder pode substituir a autoridade de Deus e que “uma lei injusta não é, absolutamente, uma lei” – uma afirmação citada por Santo Tomás e, mais tarde, por Martin Luther King, Jr. na sua ‘carta da prisão de Birmingham’. 

A oposição católica ao estatismo 

Em outras palavras, por muito tempo o ethos do catolicismo foi favorecer exatamente o que o papa denunciou: a visão de que a presunção de liberdade e não de coerção deve ser a norma prevalente na vida política. 

Por essa razão que a Igreja Católica se posicionou contra o socialismo no surgimento da ideia no mundo moderno. Em 1878, quarenta anos antes da revolução bolshevique, o Papa Leão XIII escreveu na encíclica Quod Apostolici Muneris que os socialistas estavam conspirando para “não deixar nada intocado ou completo, que tanto pelas leis humanas quanto as divinas foram sabiamente decretadas para a saúde e beleza da vida”. 

Acima de tudo, escreveu, os socialistas estavam errados em “atacar o direito de propriedade sancionado pela lei natural e, por um esquema de maldade horrível, ao parecerem desejosos de cuidar dos necessitados e satisfazerem os desejos de todos os homens, se esforçam para apreender e manter comuns o que quer que seja adquirido por título legal de herança, pelo trabalho das mentes e das mãos ou pela parcimônia do modo de viver da pessoa”. 

O Papa afirmou com firmeza que o catolicismo “sustenta que o direito de propriedade e de posse, que brota da própria natureza, não deve ser tocado e permanece inviolado. Pois ela sabe que o furto e o roubo foram proibidos de modo tão especial por Deus, o autor e defensor da justiça, que não permitia ao homem até mesmo desejar o que pertenceu a outrem e que os ladrões e despojadores, não menos que os adúlteros e idólatras, estão excluídos do Reino dos Céus”. 

Esse ativismo antissocialista (Jesus não era socialista) prosseguiu ao longo da resistência da Igreja contra o bolshevismo e o nazismo e levou o catolicismo a exercer um papel enorme na derrubada final dos regimes tirânicos na Europa Oriental em 1989 e depois. 

O Concílio Vaticano II 

A apoteose do espírito liberal no catolicismo foi afirmada admiravelmente nos documentos do Concílio Vaticano II. Isso representou a finalização de um acordo com o liberalismo que estivera se formando há muitos séculos. Foi aí que a Igreja, por fim e de maneira dogmática, afirmou o direito de liberdade religiosa como pilar dos direitos humanos. 

A encíclica Dignitatis Humanae (1965) oferece o que pode ser considerado o melhor estado de liberalismo / libertarianismio imaginado na segunda metade do século XX: 

Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. (DH, n.2) 

O Concílio declara ainda que o direito à liberdade religiosa tem fundamento na própria dignidade da pessoa humana, do modo como essa dignidade é conhecida pela palavra revelada de Deus e pela própria razão. Esse direito da pessoa humana de liberdade religiosa é para ser reconhecido na lei constitucional pela qual a sociedade é governada e se tornar, portanto, um direito civil. 

Está de acordo com a dignidade como pessoas – ou seja, seres dotados de razão e livre-arbítrio e, portanto, privilegiados por ter responsabilidade pessoal – que todos os homens devam ser imediatamente impelidos pela natureza e também compelidos a aderir à verdade. Entretanto, os homens não podem cumprir essas obrigações de acordo com as próprias naturezas a menos que desfrutem de imunidade de coação externa, bem como liberdade psicológica. Por isso, o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento não na disposição subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza. 

Uma aplicação consistente desse princípio nos leva exatamente para onde os libertários estão em questões de política, economia, cultura e relações internacionais. 

O Vaticano II afirmou ainda que buscar uma vida melhor por intermédio da liberdade está no âmago da experiência humana. Essa aspiração requer certas condições institucionais, tais como o direito à propriedade privada. O documento inspirador e belo, a encíclica Gaudium et Spes (1965), tradicionalmente vista como a obra-mor de exposição que resume o espírito do Concílio, diz o seguinte: 

A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana. Finalmente, como estimulam o exercício da responsabilidade, constituem uma das condições das liberdades civis. 

As formas desse domínio ou propriedade são atualmente variadas e cada dia se diversificam mais. Mas todas continuam a ser, apesar dos fundos sociais e dos direitos e serviços assegurados pela sociedade, um fator não desprezível de segurança. O que se deve dizer não só dos bens materiais, mas também dos imateriais, como é a capacidade profissional. (GS, n.71) 

Por sua própria natureza, a propriedade privada tem uma qualidade social que se baseia na lei da destinação comum dos bens terrenos. 

O que dizer do Bem Comum? 

Essa preocupação acerca da “destinação comum” dos bens parece estar no centro das apreensões do Papa Francisco. Ele crê que o libertarianismo impele os direitos e interesses contra o bem comum. Esse é um ponto frustrante a se levantar, pois o principal projeto da tradição liberal (desde o Iluminismo escocês até o presente) tem sido demonstrar que não são inconsistentes, que ninguém precisa ser posto contra o outro. A busca do bem de todos não requer a violação dos direitos e interesses individuais, e a afirmação dos direitos e interesses individuais não precisa conflitar com o bem de todos. 

Consideremos as palavras do homem que é tido por toda a parte como o principal gênio libertário do século XX, Ludwig von Mises. No livro de 1927, Liberalismo, argumentou não só que o liberalismo busca o bem de todos, como se opõe aos interesses especiais de um ou de outro. 

Com o advento do liberalismo, veio a exigência da abolição de todos os privilégios especiais. A sociedade de castas e de posições sociais deve dar lugar a uma nova ordem, na qual somente poderia haver cidadãos de direitos iguais. O que estava sob ataque não era mais, tão somente, o privilégio particular das diferentes castas, mas a própria existência de todos os privilégios. O liberalismo demoliu as barreiras de classe e posição social, e liberou os homens das restrições que a antiga ordem lhe havia imposto. […] 

Os partidos políticos atuais são os defensores não somente de certas ordens privilegiadas do passado, que desejam ver preservadas, e algumas prerrogativas tradicionais extensas que o liberalismo se viu obrigado a manter, por não ter sido completa sua vitória, mas também de certos grupos que lutam por privilégios especiais, isto é, que desejam atingir o status de uma casta. O liberalismo se dedica a todos e propõe um programa também aceitável para todos. Não promete privilégios a quem quer que seja. Por suscitar a renúncia à busca de todos os privilégios especiais, até mesmo exige sacrifícios, embora, sem dúvida, provisórios. Isso implica a renúncia a uma vantagem relativamente pequena, com a finalidade de obter outra maior. Mas os partidos que representam interesses especiais se dirigem, apenas, a uma parte da sociedade. A esta parte, unicamente pela qual tencionam trabalhar, prometem vantagens especiais, à custa do restante da sociedade. […] 

Os liberais afirmavam que, com a eliminação de todas as distinções artificiais de castas e status, a abolição de todos os privilégios e o estabelecimento da igualdade perante a lei, nada se interpõe no caminho da cooperação pacífica de todos os membros da sociedade, porque, então, coincidem seus interesses, corretamente entendidos a longo prazo.1 

(Meu finado amigo Michael Novak ficou tão impressionado com essas páginas que escreveu um livro inteiro sobre a questão do liberalismo e o bem comum, entendidos, exatamente, da mesma maneira que a tradição católica há tanto tempo celebra). 

Individual e Comunidade 

A era digital proporcionou oportunidades sem precedentes aos indivíduos para organizar suas associações, fontes de entretenimento, influências espirituais e escolhas profissionais. Ao ler a afirmação do Papa Francisco, ele parece acreditar que comemorar tais oportunidades (como faço com frequência) significa, necessariamente, menosprezar as normas da comunidade e do bem do todo. Por consequência, parece objetar que os desejos dos indivíduos devam vir antes as necessidades da comunidade. 

Mas, existe um problema. É o fato de a vida humana de cada indivíduo particular ser diferente. Poderíamos dizer que isso foi pensado para ser dessa maneira. A grande descoberta do liberalismo foi observar que é possível para os indivíduos buscar seus interesses de modo que não rompam com os laços da comunidade, mas os reforcem. E essa verdade é cada vez mais óbvia em nossa época. A tecnologia gerou isso. As vidas tutoreadas correspondem a uma conexão comunitária ainda maior entre grupos e nações. 

O grande fardo da tradição liberal é explicar eternamente que o caminho para a comunidade passa pela busca do interesse pessoal em cooperação voluntária com os outros. Tentamos explicar isso há centenas de anos, mas a mensagem parece necessitar sempre ser reafirmada e explicada. 

Certamente, o liberalismo não pode e não vai prometer a salvação das almas; esse é o campo das grandes religiões. O liberalismo não busca desbancar o papel das religiões na sociedade. Busca apenas oferecer as melhores condições possíveis para o desabrochar da sociedade humana no sentido material por intermédio da construção da liberdade, arcabouço essencial para o bem de todos. 

Como Mises diz no livro Liberalismo

Não promete coisa alguma que exceda o que possa ser obtido na sociedade pela sociedade. Busca, unicamente, dar uma coisa aos homens: o desenvolvimento pacífico e imperturbável do bem-estar material para todos, com a finalidade de, a partir disso, protegê-los das causas externas de dor e sofrimento, na medida em que isso esteja ao alcance das instituições sociais. Diminuir o sofrimento, aumentar a felicidade: eis seu propósito.2 

O alvo errado 

Em suma, o libertarianismo busca um mundo mais livre, um mundo de direitos universais, a construção de instituições que deem o lugar mais excelso à dignidade humana, conferindo maior vantagem sobre interesses potentes, boa parte deles associado aos Estados que buscam violar esses direitos e diminuir tal dignidade. A liberdade não pode garantir uma “vida bela”, mas essa vida seria impossível de ser imaginada ou alcançada sem a liberdade. Notar isso não é “desilusão”, mas uma descrição das oportunidades maravilhosas que estão disponíveis em nossos tempos. 

Para esclarecer, não digo de modo algum que a tradição católica de política equivale ao libertarianismo. Há demasiadas anomalias e contradições para que faça tal afirmação. O que estou a dizer é que a Igreja se mostrou capaz, por uma longa história, de falar de modo variado sobre liberdade e política numa voz libertária, e, por um motivo: a fé crê, verdadeiramente, que a verdade libertará o mundo. 

Libertários não são invasores indesejados, mas, em vez disso, defensores do progresso contínuo no mundo que a própria Igreja Católica pretende servir e apoiar. 

*Este artigo foi originalmente publicado na Foundation for Economic Education.


Notas
  1. Ludwig von Mises. Liberalismo Segundo a Tradição Clássica. Trad. Haydn Coutinho Pimenta, São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010, p. 170,171 e 173. ↩︎
  2. Ludwig von Mises, op. Cit, p. 201. ↩︎

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