C A R R E G A N D O . . .

Instituto Libertário Cristão

Ricardo Rodriguez e Brennan Lester

Começou lá: o imperador romano Teodósio I assinou o decreto, e toda Roma foi coagida ao Cristianismo. Desde então, como muito bem observa o economista Ludwig von Mises, o Cristianismo jamais conseguiu depor a espada em larga escala1. De fato, a política devora um homem – a politização de algo muda profundamente um homem e as suas ideologias. A política mudou também a cristandade – profunda e extremamente – e o resultado final são contradições, assim como completa alienação. Romanos 13, mostra a história, tem sido um princípio central dessa politização, muito semelhante ao episódio de tributo sobre o qual foi tratamos anteriormente. Romanos 13, contudo, ao ser interpretado como tendo a intenção de apoiar o Estado, presta-se como tal a contradições, alienação, má interpretação e definitivamente má tradução.

Deve-se ter em mente quão crucial é esse texto para o anarquista cristão – não se pode fugir da discussão quanto ao seu conteúdo quando se está falando sobre qualquer coisa envolvendo o anarquismo cristão. Além do mais, o movimento anarquista nem mesmo gosta disso, e por razões muito boas – o texto foi usado para o Direito Divino dos Reis2, assim como para o Direito Cristão a fim de justificar o governo3. O monarca Rei James I recorreu à autoridade de Romanos 13 quando escreveu, no capítulo 20 do seu Works (1609), que “[o] estado monárquico é o que há de mais supremo na terra; pois reis não são apenas tenentes de Deus na terra, e se sentam no trono de Deus, mas até mesmo pelo próprio Deus são chamados de ‘deuses’”. Da mesma forma, e mais recentemente, o evangelista americano John MacArthur escreveu que o princípio da subjugação às autoridades governamentais é “não qualificado, ilimitado e incondicional… [o] texto não faz distinção entre bons governantes e maus governantes, ou leis justas e leis injustas”: ainda assim, “[c]ada um de nós deveria entrar em uma fila e submeter-se àqueles que estão mandando em nós”4. Não é uma visão bonita – o movimento anarquista, como resultado, está muito bem justificado por naturalmente alienar-se do Cristianismo existente que está em vigor. Contudo, essa alienação não é de forma alguma corroborada por fatos reais, e muito em prejuízo do movimento, como será explicado em detalhes antes do final da nossa análise. 

Essa interpretação criou uma grande hostilidade para o Cristianismo na maioria dos círculos anarquistas ao longo da história, considerando o Estado e a religião como uma besta – aquela que não pode ter a igreja sem o estado, que ambos são parte do mesmo princípio escravizador – talvez expressa da forma mais extraordinária por Mikhail Bakunin quando ele escreveu, [n]ão há, não pode haver, um Estado sem uma religião”5, que sob o Cristianismo, “todos os homens [os “legisladores inspirados pelo próprio Deus”] devem obediência passiva e ilimitada; pois contra a razão divina não há razão humana… Escravos de Deus, os homens devem também ser escravos da Igreja e do Estado visto que o Estado é consagrado pela Igreja” (ênfase de Bakunin) – “sua existência necessariamente implica a escravidão de todos os abaixo dele”6, e como tal oferecia a agora infame inversão, “se Deus realmente existisse, seria necessário aboli-lo”7. Essa opinião tem sido amplamente adotada por anarquistas das mais diferentes espécies, tais como Benjamin Tucker, que traduziu o God and the State de Bakunin para as audiências inglesas, e a crítica da religião pelo egoísta Max Stirner8.  

Isso não apenas enfureceu os ateus, mas também gerou um desprezo entre os cristãos anarquistas; especialmente em Leo Tolstoy, o qual, no seu trabalho Church and State, de 1882, assegura que o Cristianismo “exclui o culto externo a Deus [governantes e estadistas]” e repudia positivamente o magistério, mas diz que o elo entre o Estado e o Cristianismo é um desvio e que “[e]sse desvio tem início no tempo dos apóstolos e especialmente naqueles errantes segundo o magistério de Paulo”9. Essa crítica é também reproduzida por uma figura de grande significado para o pensamento modernista e anarquista, embora ele propriamente dito não seja um anarquista. Friedrich Nietzsche, no The Antichrist, criticou os apóstolos, em especial Paulo, por falsificar a história do Cristianismo, de Israel e da humanidade para seus próprios propósitos10. Mas tudo isso se deve à falta de um entendimento adequado, tanto pela rejeição do Cristianismo per se quanto pela rejeição da mensagem de Paulo no livro de Romanos, por anarquistas em detrimento a uma compreensão mais completa das Escrituras – entendimento que este artigo vai apresentar, o qual vem em auxílio do anarcopacifismo e rejeita a noção de lealdade a um Estado ostensivamente ordenado por Deus.

O que pretendemos fazer é, então, pegar o texto em grego referente a esses versos e começar a traduzir e a propor uma análise da passagem11. Não pretendemos criticar outras interpretações propriamente ditas, uma vez que já existe, ou vai surgir, uma literatura melhor do que a que podemos oferecer (ver a seção “Leitura Adicional”). Antes, nossa intenção é mostrar uma interpretação histórico-gramatical do texto – aquela na qual necessariamente acaba em um anarcopacifismo cristão – e procura chegar a uma conclusão muito ampla tanto na sua força quanto na sua coesão geral. Uma análise teológica de um texto nunca é perfeita, mas o que de fato pretendemos é que ela seja forte o suficiente para persuadir uma pessoa a livrar-se das suas visões de que ser cristão deve necessariamente significar apoio a um Estado ordenado por Deus.  

É preciso iniciar com alguns esclarecimentos. Romanos 13 – até onde se pode dizer – não foi escrito com nenhum tipo de objetivo estoico em mente12. Não existe uma maneira metafórica ou alegórica exata para olhar para esse texto. Na verdade, alguns estudiosos consideram os capítulos 12-15 de Romanos como a parte “fundamental” do livro, como se pode ver pela análise histórico-gramatical do que Paulo escreve aos cristãos13. Não apenas isso, mas essa seção inteira do livro de Romanos está escrita de forma coesa14, cada verso se liga inextrincavelmente ao outro; enquanto uma carta para cristãos romanos, nenhum fragmento deveria ser negligenciado na análise15.  

Por esse motivo, é importante primeiro prestar atenção à maneira como Paulo reitera os ensinos de Jesus no Sermão da Montanha (Mateus 5:38-39, NVI), no final do capítulo 12: “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” (Romanos 12:21). Examinar os conteúdos de Romanos 13 sem compreender Romanos 12 é retirar o contexto das lições pregadas – pois, no coração de Romanos 12, está a ideia divina de que o cristão deve amar seu próximo como a si mesmo e não resistir o mal com o mal. Não é amar aqueles que você prefere amar, mas até mesmo “[a]bençoar aqueles que o perseguem, abençoar e não amaldiçoar” (Romanos 12:14). Esses princípios são o próprio fundamento dos ensinos de Cristo, do pacifismo cristão e da filosofia de Paulo. 

E isso nos leva a Romanos 13:1 (NVI), a uma frase que encerra a questão, na maior parte, em favor do estatismo: “Todos devem se sujeitar às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Isso parece ser um beco sem saída para os cristãos – devemos, portanto, nos curvar ao Estado. Mas não é isso o que parece, como mostrado pelo tratamento dado por John Howard Yoder à tal passagem no seu brilhante The Politics of Jesus. Para começar, é uma boa ideia ver o texto na sua forma em grego e trabalhar a partir daí:  

Πᾶσα ψυχὴ ἐξουσίαις ὑπερεχούσαις ὑποτασσέσθω. οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ, αἱ δὲ οὖσαι ὑπὸ θεοῦ τεταγμέναι εἰσίν: 

Uma das palavras em que devemos nos concentrar, mesmo que não possamos lê-la, é τεταγμέναι, a qual é normalmente traduzida como “ordenado” ou “estabelecido” na versão King James e na Nova Versão Internacional. Isso muda a implicação subjacente, pois, quando voltamos ao capítulo 12, lemos:  

“Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o senhor (Romanos 12:19)”. 

Podemos começar vendo um ponto para o qual Paulo está oferecendo um exemplo – submetam-se, porque Deus arruma e corrige tudo; porque, para um cristão, Deus está, em última instância, no controle. Podemos ler em Yoder: 

“Não se pode dizer que Deus crie, institua ou ordene os poderes constituídos, mas apenas que ele os estabelece, coloca-os em ordem, [Deus tem] soberania para determinar onde eles pertencem, qual é o seu lugar. Não é como se tivesse existido um tempo quando não havia governo e então Deus fizesse o governo através de uma nova e criativa intervenção; existe hierarquia, autoridade e poder desde a existência da sociedade humana. Seu exercício envolve dominação, desrespeito pela dignidade humana, além de violência real ou potencial desde que o pecado existe. Também não é por estabelecer esse reino, que Deus específica e moralmente aprove o que um governo faz. O sargento não cria os soldados que ele treina; o bibliotecário não produz nem aprova o livro que ele cataloga e coloca nas prateleiras. Da mesma forma, Deus não se responsabiliza pela existência de ‘poderes constituídos’ rebeldes ou pela sua forma ou identidade; eles já existem. O que o texto diz é que Deus ordena-os, aproxima-os, providencial e permissivamente, alinha-os com os propósitos divinos”16 

O ponto de Yoder pode ser verificado em 1 Samuel 8, no qual pela primeira vez um governo é de fato mencionado na Bíblia, assim como em Oseias 8:4. 

Voltemos, contudo, à análise grega de Romanos 13:1 – ainda não terminamos de examinar o vocabulário, uma vez que há mais alguns aspectos cruciais que devemos ter em mente: ὑποτασσέσθω, em particular, também vem de τάσσω, mas também combinada com a palavra ὑπο, que significa ‘sob’, que, por sua vez, passa a significar “sujeitar-se a”, em um sentido de submissão voluntária – ao contrário do dogma corrente segundo o qual se é instruído a fazer algo, porque é um mandamento. Isso remete algumas frases no texto ao texto de Romanos 12; não gera nenhuma implicação de uma obediência absoluta – antes uma obediência voluntária, altamente condicional. 

Essa obediência ganha corpo na palavra ἐξουσίαι, que é traduzida como “autoridades”. N. T. Wright e Clinton Morrison salientam enfaticamente que nas autoridades que Paulo menciona não está clara a distinção entre terrenas e celestiais17. Isso não apenas corresponde a Paulo, mas é possível ver sua natureza difundida até mesmo na moeda romana, no denário, onde está escrito “Tibério César, filho adorador do deus, Augusto”18. Essa mistura incrível faz dela uma palavra confusa para se traduzir. Não só isso, palavras mais específicas como ἀρχαὶ e δυνάμεις – “governantes” e “poderes”, respectivamente – podem sugerir metade do significado da palavra ἐξουσίαι, e deveriam ser examinadas com cuidado. 

As pessoas veem esses governantes e poderes de Romanos 8: 38-39, mostrando um profundo desprezo por eles. Nesse sentido, Paulo escreve que Cristo “despojou os governantes e autoridades (ἀρχὰς e ἐξουσίας) e fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Colossenses 2:15). Paulo jamais deixa de salientar que nada fica entra o cristão e Deus19 – que as autoridades estão despojadas e reduzidas a nada. Essa submissão voluntária prova ser uma expansão profunda do que Paulo escreveu depois – com a submissão às autoridades devido ao fato de que Deus as instituiu, de que Jesus despojou e tornou as autoridades ineficazes, de que deve-se deixar a vingança a cargo de Deus, e não retribuir mal com mal: “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor’” (Romanos 12:19). 

Essa linha de pensamento não perde sua força à medida que se avança, mas sim continua a se desenvolver em Romanos 13:2, que lê na NVI: 

Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trarão julgamento sobre si mesmos”.   

E em Grego:  

ὥστε ἀντιτασσόμενος τῇ ἐξουσίᾳ τῇ τοῦ θεοῦ διαταγῇ ἀνθέστηκεν, οἱ δὲ ἀνθεστηκότες ἑαυτοῖς κρίμα λήμψονται. 

A palavra mencionada anteriormente, que significa “ordenar”, “instituir”, “providenciar” etc. – τάσσω – está também nesse versículo. A palavra τάσσω é uma parte fundamental de toda essa passagem, como se pode ver – e mais, é usada aqui na palavra ἀντιτασσόμενος, que combina tanto τάσσω quanto o particípio ἀντι, que é conotativo para “anti”, levando assim a uma combinação que significa literalmente ser “contra a ordem”, ou ser contra a ordem estabelecida por Deus.  

Neste ponto, devemos ser capazes de ver o óbvio – o que também remonta àquilo que Paulo dizia um pouco antes. Cada coisa está indo para seu devido lugar – um cristão é, de fato, uma pessoa que deveria acreditar que a vingança pertence somente a Deus e não tomar nada em suas próprias mãos. Um cristão deve ser um pacifista no que diz respeito às autoridades. A questão que, portanto, se impõe é se essa submissão voluntária é também condicionada a permitir que eles se sobressaiam e se submetam a qualquer um que apareça com uma arma grande. 

É simples: resistir ao mal não com o mal significa exatamente o que Jesus quis dizer com isso. Não significa que nunca se deva resistir ao mal, como de forma tão admirável salienta Adin Ballou20; resistir sim ao mal, mas com o bem – com amor cristão. Paulo explica isso de maneira profunda em Romanos 12 – mas o que isso acarreta per se? Acarreta afastar-se do mal, amar seus inimigos e orar por eles. O Cristianismo primitivo é conhecido por mártires que jamais revidaram, mas certamente muitos estavam correndo, fugindo, enquanto pregavam, oravam e amavam21. É isso o que significa resistir ao mal não com o mal – um cristão verdadeiramente deve se afastar do que a Bíblia ensina como mal22 e buscar sua fé em Deus. Não se deve esquecer aquela última parte, pois como afirma Atos 5:29: “Pedro e os outros apóstolos responderam: ‘É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!’” (NVI).  

Não é preciso voltar ao grego para ver que a resistência ao mal pelo mal é um tópico repetidamente abordado por Paulo. Esse mesmo tópico é mais adiante exemplificado na tradução, pois diz-se o seguinte nos versos 3-5 da NVI:

3 Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. 

4 Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal. 

5 Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência

É aqui que os conteúdos dos dois primeiros versos se interligam: resistam ao mal não com o mal, mas ao invés deixem para Deus o vingar-se, pois a vingança é Dele; e é Ele quem tem a prerrogativa para tanto, “pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão” (Mateus 26:52). Tal tópico se relaciona também com muitas coisas, especialmente com a ideia de que uma resposta branda afasta a ira (Provérbios 15:1), juntamente com muitos outros versículos mostrando que o amor detém o mal. Há uma ideia profunda que Paulo está mostrando aqui, qual seja, a de não resistir ao mal com o mal, o que nos libertará. 

Além disso, o versículo quatro essencialmente diz para se fazer o que é certo e não transgredir o ensino de Jesus, pois eles não usam suas espadas sem uma causa (εἰκῇ é a palavra traduzida por “sem razão” embora se possa ter uma redação mais forte com “sem uma causa”). Outra tradução incorreta está no versículo quatro – “Eles são servos de Deus”, na qual a palavra ‘servo’ (διάκονος) está na verdade no singular. O trecho é mais ou menos traduzido para “Ele é servo de Deus”, com a palavra “governantes” sequer estando no texto grego do versículo quatro. E mais, o quarto verso não menciona ‘governantes’, mas antes torna claro que seja quem for que tenha a espada está sob o controle e disposição de Deus (vingança e tudo mais), e que a transgressão do resistir ao mal com o mal trará consequências.  

O quinto versículo, portanto, sela essa interpretação, mostrando por que deveríamos voluntariamente nos submeter às autoridades – possível punição, mas também consciência por não deixar Deus tratar da situação. Deveríamos nos desviar do mal, mas fazê-lo em amor, pois esse é o mandamento de Deus. 

É ainda preciso ficar atento depois disso, pois tem-se um obstáculo a mais para se superar antes de se ter um entendimento integralmente claro do texto – ou seja, de Romanos 13:6. Essa barreira mostra-se, entretanto, ilusória quando submetida à uma análise mais detalhada, na qual abundantes erros de tradução confundem a verdadeira expressão do texto.  

Lê-se na NVI: 

É por isso também que vocês pagam impostos, pois as autoridades são servas de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho”.  

διὰ τοῦτο γὰρ καὶ φόρους τελεῖτε, λειτουργοὶ γὰρ θεοῦ εἰσιν εἰς αὐτὸ τοῦτο προσκαρτεροῦντες. 

É preciso perceber que duas coisas estão faltando aqui: ‘autoridades’ e ‘governante’. Aquele é traduzido de λειτουργοὶ, contudo o termo não tem nada a ver com autoridades. Pelo contrário, ele está relacionado com um ministro, um padre ou um servo – não tem a ver com poder autoritário. O termo “governante”, por outro lado, parece vir de εἰς αὐτὸ τοῦτο, que se traduz em “com isto mesmo”, enquanto “προσκαρτεροῦντες” é traduzido para “aderir a”.

A cereja do bolo é que essa passagem se transforma em “Pois é por isso que você paga tributos, porque os sacerdotes de Deus (ou ministros ou servos) aderem a isto mesmo”. Como prova suplementar para a tradução de “εἰς αὐτὸ τοῦτο” sem quaisquer explicações gramaticais da língua grega, pode-se cruzar informações com 2 Coríntios 2:3, Filipenses 1:6 e 2 Coríntios 5:5 – todas as quais usam “τοῦτο αὐτὸ”, “εἰς αὐτὸ τοῦτο”, ou simplesmente “αὐτὸ τοῦτο”, mas também pode se traduzir como “isto mesmo”.  

É claro que essa passagem não pode ser uma declaração pró-tributação. Mesmo se alguém tomasse a tradução dessa forma, encontraria grande imprecisão histórica considerando a quantidade de fontes mostrando que os impostos não iam para a administração do império romano. Pelo contrário, devia ser um fato conhecido que os impostos iam para a expansão militar antes de serem concentrados na administração24 – lembrando o conselho que o imperador Septimus Severus [Sétimo Severo] deu aos seus herdeiros, “vivam em harmonia; enriqueçam as tropas; ignorem todos os demais”25. Já com Nero, os imperadores depreciavam a moeda para financiar os custos crescentes das forças armadas e da burocracia26. Essa taxação indireta sobre saldos de caixa ficou cada vez pior sob os imperadores que sucederam Aurelius, com valores maiores do que nunca na história do império quando o herdeiro de Severus, Caracala, assumiu27. O império romano periodicamente confiscava propriedades, e cidades eram forçada a alimentar, alojar e providenciar transportes para as tropas – os soldados eram inclusive autorizados a saquear da maneira que desejassem28.

Para consolidar a interpretação de 13:1-6, deve-se olhar para o versículo final logo após as passagens – “Dê a cada um o que lhe é devido: se imposto, imposto; se tributo, tributo, se respeito, respeito; se honra, honra”. Isso esclarece tudo – submeter-se voluntariamente e não resistir ao mal com o mal. Dê a cada um o que lhe é devido – o que no final das contas está resumido na Regra de Ouro de amar seu próximo como a si mesmo. Está claro que no livro de Romanos, Paulo está delineando como o cristão piedoso deve lidar com aqueles que são difíceis de amar: as corruptas, violentas e degeneradas “autoridades” que compõem o Estado, elas são um teste para a obediência do cristão ao mandamento de Deus para o amor. 

Se o anarquismo se aliena da religião – jamais aceitando sua existência, mas sempre querendo afastá-la, então não há motivo para ser um anarquista. Uma ideologia política que rechaça mais de três bilhões de pessoas no mundo não é uma ideologia política que valha a pena ter. A ideia de que o anarquismo deve ser absolutamente dependente de qualquer tipo de convicção pessoa – seja religiosa, seja não religiosa – é uma ideia vã. O anarquismo refere-se ao estado natural dos seres humanos e à compreensão de como os seres humanos funcionam na sua forma natural. Pois como disse David Hume, “(…) a estabilidade da posse, sua tradução em consentimento, e o cumprimento de promessas. Esse são, portanto, anteriores ao governo”29. As pessoas não podem esquecer que o anarquismo trata da ordem natural da sociedade humana – dizer que a religião não é uma parte da sociedade humana seria ignorar milhares de anos de civilização. Dizer que a religião naturalmente prejudica uma sociedade é também ignorante – pois a história mostra de maneira profunda que jamais foi a religião que causou problemas, mas o poder político que absorveu a religião. Teodósio I é apenas um exemplo entre tantos, juntamente com argumentos bem elaborados sobre como a necessidade desesperada do Cristianismo pela busca de poder político fere a igreja mais do que qualquer coisa30

O Cristianismo necessariamente se alinha com o anarquismo, o Cristianismo necessariamente é o anarquismo. É uma forma de anarcopacifismo – ele se submete à pacificação, mas resiste em amor, compaixão e com profunda introspecção religiosa. Mostra que não há outra autoridade genuína a não ser Deus, e que tudo está sob o controle de Deus – a ira e a vingança são Dele, não do cristão. Os anarquistas deveriam dar as boas-vindas à chance de conectar o Cristianismo ao anarquismo, ou a qualquer religião, aliás, uma vez que o Cristianismo insiste na importância da paz e na compreensão fundamental dos benefícios sentidos a partir da cooperação, em oposição ao parasitismo do Estado. Deixar de lado de maneira ignorante um grupo inteiro de pessoas é derrotar o propósito de disseminar informação. Com amor, respeito e uma compreensão aguçada, os anarquistas podem verdadeiramente disseminar a base do anarquismo. O medo de confrontar a religião apenas leva ao medo de aceitar a ideologia anarquista, e uma amarga rejeição do que é caro para muitas “pessoas” é isolar o movimento das pessoas usando um dogmatismo intelectual. 

Desesperados para se adequarem aos modos de pensar da sociedade, muitos cristãos – cujo objetivo principal deveria ser obter a salvação – desesperadamente se apegam ao Estado. Com surpreendentes saltos de apologética, muitos cristãos irão tentar justificar o Estado através do uso das Escrituras, não importando quais forem os custos para fazê-lo. As mortes de milhões e milhões de inocentes ao longo da história não têm importância – as pessoas ainda irão acreditar que o Estado não tenta de forma direta dificultar o seu relacionamento com Deus. A tentativa descontrolada para usar a espada a fim de expressar o Cristianismo é em vão – no final, irá afastar completamente as pessoas da fé. Se alguém deve amar a Cristo, a pessoa deve abandonar a espada, e, ao abandonar a espada, ela deve abandonar sua lealdade a qualquer Estado, cujas origens começam forçando os outros a temerem e a se submeterem a uma vontade humana específica; o Estado eleva a sua lei acima de qualquer coisa; sua supremacia sobre um território reivindica na íntegra o espírito que poderia apenas ser legitimamente reivindicado por Deus – e nenhum cristão pode pregar fidelidade a uma força como aquela. Ao esquadrinhar Romanos 13 em uma passagem sobre resistir ao mal com amor cristão, o cristão deveria refletir sobre a quem verdadeiramente pertence sua aliança. A questão, portanto, permanece: o cristão tacitamente tem mais lealdade ao Estado secular, ou lealdade à sua fé no Deus eterno? Aquela exige lealdade até a morte, e esta exige lealdade de todo seu coração, mente e corpo, e condena a ideia de ser indiferente. A escolha é do cristão – que escolha com sabedoria. 

*Este artigo foi originalmente publicado no Center for a Stateless Society.


Leitura complementar:

Stark, Thom. Peace and Security: Two Rival Gospels in Romans 13 (A History of Interpretation and Critical Appropriation). Pickwick Publications, no prelo. 

Notas:
  1. Mises, Ludwig Von. Theory and History: An Interpretation of Social and Economic Evolution. Auburn, Ala.: Ludwig Von Mises Institute, 2007. 43. Impresso. ↩︎
  2. É possível ver uma defesa a respeito no Comentário sobre a Epístola de Romanos de Martin Luther.  ↩︎
  3. Um sermão interessante indicando que “os cristãos têm uma santa obrigação de serem os melhores cidadãos que podemos ser”: God and Country Sermon, God and Country Sermon by Brian La Croix, Romans 13:1-13:5 – SermonCentral.com”. SermonCentral.com – Free Sermons, Illustrations, Videos, and PowerPoints for Preaching. Web. 06 Fev. 2011. ↩︎
  4. MacArthur, John. “The Christian’s Responsibility to Government—Part 1 — John MacArthur.” Bible Bulletin Board. Web. 09 Fev. 2011.  ↩︎
  5. Bakunin, Mikhail Aleksandrovich. God and the State. [S.l.]: Cosimo, 2008. 84. Impresso.  ↩︎
  6. Ibid., p. 24. ↩︎
  7. Ibid., p. 27-8.  ↩︎
  8. Tucker, Benjamin R. “State Socialism and Anarchism: How Far They Agree and Wherein They Differ.” Instead of a Book by a Man Too Busy to Write One: A Fragmentary Exposition of Philosophical Anarchism. Adamant Media Corporation, 2005. 14. Impresso. 
    Ver também Stirner, Max. The Ego and its Own. ↩︎
  9. Tolstoy, Leo. “Church and State.” Wikisource, the Free Library. Web. 31 Jan. 2011.  ↩︎
  10. Nietzsche, Friedrich. Twilight of the Idols/The Anti-Christ. Tr. R.J. Hollingdale. p. 165-169 para uma breve visão geral, embora Paul seja mencionado muitas vezes.  ↩︎
  11. É possível participar e seguir: http://www.greekbible.com/ oferece uma Bíblia em grego muito bem feita, no mesmo http://biblelexicon.org/ se encontra um poderoso léxico. Entretanto, como Ricardo fez quando escreveu a análise das Escrituras, é melhor comprar um léxico oficial, juntamente com a pesquisa contínua no Google e usando referências cruzadas. Um imenso escrutínio e atenta reflexão devem ser investidos a todo o momento. ↩︎
  12. Há muitos pensamentos que vão e vêm sobre quanto (se é que é) de estoicismo é usado nos escritos de Paulo, mas não há praticamente nenhuma evidência de que Paulo o usou para Romanos 13. Pode-se ver isto no Stoicism: Traditions and Transformations, onde os autores Steven K. Strange e Jack Zupko tentam aplicar o estoicismo no coração dos ensinos de Paulo, mas não fazem referência a terem sido usados termos estoicos em Romanos 13. Além do mais, existe uma forte refutação à ideia de que Paulo chegou a usar uma linguagem estoica, refutação essa feita por Joseph Spencer no chamado Stoic Influence in the Writings of Saint Paul. Na Encyclopedia of Religion and Ethics, o autor, James Hastings, escreve que “as visões de Paulo a respeito do nascimento de Jesus e da sua ressurreição… são ininteligíveis exceto em termos de estoicismo”, mas não faz referência à noção de que as visões políticas Paulo deveriam ser analisadas dessa forma. ↩︎
  13. Thorsteinsson, Runar M. Roman Christianity and Roman Stoicism: a Comparative Study of Ancient Morality. Oxford [u.a.: Oxford UP, 2010. 92. Impresso.  ↩︎
  14. Não se deveria esquecer que os versículos e capítulos não estão nos manuscritos originais da Bíblia, mas foram desenvolvidos depois. Há muitos ministérios diferentes que oferecem uma visão geral sobre esse desenvolvimento, por exemplo o “Chapters and Verses in the Bible” de Rowland Croucher. ↩︎
  15. Lembre-se, contudo, de que o exame dos versículos termina em 13:7, e que alguém pode fazer uma análise que avança no capítulo. Tom Stark destaca maravilhosamente no The Human Faces of God, páginas 201-202, que Romanos 13 tinha também muito a ver com as visões escatológicas que Paulo teve, as quais são mais tardes mostradas no capítulo.  ↩︎
  16. Yoder, John Howard. The Politics of Jesus; Vicit Agnus Noster. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1972. 203. Impresso. ↩︎
  17. Ver N.T. Wright’s “Paul and Caesar: A New Reading of Romans”, juntamente com The Powers That Be de Clinton Morrison.  ↩︎
  18. Tolstoy, Leo, and Constance Garnett. The Kingdom of God Is Within You. Mineola, NY: Dover Publications, 2006. 11-14. Impresso.  ↩︎
  19. Smith, Mahlon H. “Tiberius.” Virtual Religion Network. Web. 31 Jan. 2011.  ↩︎
  20. Romanos 8:38-39  ↩︎
  21. Balasundaram, Franklyn J. Martyrs in the History of Christianity. New Delhi: Publ. for The United Theological College, Bangalore by ISPCK, 1997. Impresso. ↩︎
  22. 1 Pedro 3:11, Salmo 34:14, Salmo 37:27-29, Provérbios 3:7, Zacarias 1:4 para nomear algumas passagens.   ↩︎
  23. Bartlett, Bruce. “How Excessive Government Killed Rome”. The Cato Journal, Volume 14 Número 2, Outono 1994. ↩︎
  24. Peden, Joseph R. “Inflation and the Fall of the Roman Empire.” Ludwig Von Mises Institute. 7 Set. 2009. Web. 31 Jan. 2011.  ↩︎
  25. Bailey, M.J. “The Welfare Cost of Inflationary Finance.” Journal of Political Economy 64(2): 93-110.  ↩︎
  26. Schuettinger, Robert Lindsay, e Eamonn Butler. “The Roman Republic and Empire.” Forty Centuries of Wage and Price Controls: How Not to Fight Inflation. Washington, D.C.: Heritage Foundation, 1979. 19-20. Impresso.  ↩︎
  27. Haskell, H.J. The New Deal in Old Rome: How Government in the Ancient World Tried to Deal with Modern Problems. New York: Alfred A. Knopf, 1939. 216. Impresso.  ↩︎
  28. Hume, David. “Book III.” A Treatise of Human Nature. New York, NY: Barnes & Noble, 2005. Impresso. ↩︎
  29. Boyd, Gregory A. The Myth of a Christian Nation How the Quest for Political Power Is Destroying the Church. Grand Rapids (Michigan): Zondervan, 2005. Impresso.  ↩︎

O ILC publica artigos, vídeos e outros conteúdos de autores que se identificam como cristãos e libertários. Esses conteúdos refletem diferentes opiniões, com as quais nem todos concordarão. Da mesma forma, nem todo conteúdo representa necessariamente uma posição 100% compatível com a visão oficial do ILC.

Posts relacionados

Copyright © 2020

Todos os Direitos Reservados