Instituto Libertário Cristão
Tom Woods
O novo regime do Vaticano tem falado muito sobre a necessidade de ser aberto, de acolher e encorajar os fiéis a discutirem seus pontos de vista – mesmo quando contradizem o ensinamento católico.
Como é costume em situações como essa, tal encorajamento só se estende à esquerda. Se você discordar com a doutrina da Igreja sobre moralidade sexual, poderá concelebrar missa com a mais alta autoridade eclesiástica. Se quiser balbuciar e se contorcer no chão em um ambiente litúrgico, será saudado de braços abertos, quando se levantar. No entanto, se você está preocupado com as conferências dos bispos e as declarações sobre economia que parecem ter sido extraídas da plataforma do partido Democrata de 1976, nada dessa conversinha alegre de abertura se aplica a você.
Apresento a vocês, como Exemplo A, uma conferência recente sobre libertarianismo e catolicismo, patrocinada pela Universidade Católica da América. A conclusão da conferência estava evidente no próprio título: “Autonomia Errônea: A Questão Católica contra o Libertarianismo”.
Além de uma lista de palestrantes de quem vocês nunca ouviram falar, os participantes tiveram a oportunidade de ouvir Mark Shields, o porta-voz democrata e comentarista do antigo programa da CNN chamado Capital Gang. Depois, havia alguns representantes de sindicatos, que, sem dúvida, se opõem ao ensinamento de Leão XIII de que as associações de trabalhadores são boas desde que não usem violência ou ameaça e que as pessoas sejam livres para aceitar qualquer trabalho que desejem.
Ora, quem, nessa nova atmosfera de abertura, pôde defender a posição libertária? Creio que vocês captaram claramente a cena, de modo que sabem a resposta. A conferência saiu diretamente da Rússia de Stalin. Devemos acabar com os desviacionistas! Não demonstram nenhuma “preocupação pastoral” e todo mundo era testemunha.
O que é essa doutrina perigosa contra a qual os esquerdistas da Igreja devem se unir? O libertarianismo ensina que os indivíduos devem evitar a violência ao interagir com o próximo, e devem recorrer à força somente em autodefesa.
Isso é tudo. O libertarianismo não diz estritamente respeito ao “individualismo”, ao “atomismo” ou qualquer das caricaturas típicas. Preocupa-se unicamente com o uso da violência na sociedade. Diz que não devemos roubar e que não devemos ferir ninguém. Diz que todos nós – usemos ou não um uniforme oficial – devemos nos ater a essas regras morais elementares.
Quando apresentado dessa maneira, o libertarianismo não parece tão amedrontador, e é por isso que seus opositores nunca o apresentam desse modo. O libertarianismo não significa egoísmo, não significa não ajudar ninguém, não significa não trabalharmos juntos com as pessoas em projetos que beneficiem a comunidade. Não significa “autonomia”, “errônea” ou qualquer outra coisa do tipo. Diz, simplesmente, que pessoas civilizadas não apontam uma arma nas costas de outras pessoas para fazê-los cooperar. Esse é o comportamento dos bandidos.
(Existem objeções ao ponto de vista libertário, certamente. Respondi algumas delas em “The Libertarian Speech I Would Deliver to the Whole Country” [O Discurso Libertário que Eu Faria a Toda a Nação] e em “Applying Economics to American History” [Aplicando a Economia à História Americana]. “Os monopólios nos devorarão” é uma afirmação comum que respondi. De fato, um professor de uma universidade pontifícia entrou em contato comigo há uns meses para dizer que esse artigo mudou seu modo de pensar sobre o assunto).
O libertarianismo pode ser compreendido como uma extensão da tradição de guerra justa da Igreja, que lida com a violência entre Estados e com questões que envolvem violência entre indivíduos. Isso é muito apropriado, já que os Estados são, afinal, simplesmente, agregados de indivíduos.
Ao desenvolver a doutrina da guerra justa ao longo dos séculos, um princípio especialmente relevante à nossa discussão começa a emergir: a guerra – ou seja, a violência organizada – é para ser empreendida somente como último recurso. Isso não está tão distante da mensagem libertária, que confina o uso legítimo da violência somente às ações defensivas, nunca para a agressão.
A palestra principal dessa conferência foi dada pelo cardeal Oscar Rodriguez Madariaga, arcebispo de Tegucialpa e confidente íntimo do Papa Francisco. Quase tudo que citam que o cardeal disse no evento, no entanto, está errado. A desigualdade não é mais extrema hoje do que há cem anos (embora, além de inveja ou de despeito, que motivos teríamos para passar um só momento nos preocupando com isso, especialmente quando o bem-estar de todos na humanidade aumentou de maneira dramática?). Não é verdade que o rico, e não o pobre, beneficia-se da globalização; o século XX viu o maior desenvolvimento contra a pobreza mundial da história da humanidade. E se os ricos desfrutam de luxos hoje, são luxos que os permitem ter o que já poderiam ter há 75 anos, salvo que, hoje, eles os têm, talvez, de modo mais rápido e com mais estilo. Os ricos já podiam voar ou dirigir para onde desejassem, estudar onde quisessem etc. Hoje, mais pessoas do que jamais se pôde na história são capazes de todas essas coisas. Se o pobre, há 500 anos, tinha de viajar à pé, ao passo que o rico viajava em carruagens movidas por cavalos, hoje, o pobre pode dirigir carros usados, ao passo que o rico pode dirigir carros chiques. A desigualdade, obviamente, diminuiu, no único sentido que importa.
O cardeal chamou a “economia do gotejamento” (trickle-down economy) de uma “fraude”. Não conheço ninguém no mundo que descreva o próprio sistema econômico como “gotejante”, portanto o cardeal está, simplesmente, sendo pouco caridoso ao referir-se a um ponto de vista de que discorda. A questão central, de que um aumento no padrão de vida além da fronteira só pode ocorrer por meio de um aumento na quantidade de capital por trabalhador, não é discutível, logo não vejo como pode ser um engano.
Expliquei inúmeras vezes o processo, como neste vídeo para o Instituto Mises, por exemplo. É assim que o livre mercado, por sua própria natureza, leva a um aumento do padrão de vida para todos.
A “desigualdade” é o fundamento da violência interpessoal? Se assim o é, por que também não é a base de conflitos internacionais? Se é tão inaceitável para mim ser tão mais rico que meus semelhantes, por que – especialmente para alguém como o cardeal Maradiaga, que é fascinado por grandes agregados – não seria igualmente inaceitável para o meu país ser muito mais rico que os outros ao redor? Eis a receita para a violência infindável.
A regra de 80/20 de Pareto parece aplicar-se a todas as áreas da vida – 20 por cento de trabalhadores fazem 80 por cento do trabalho; 20 por cento dos italianos em 1906 possuíam 80 por cento das terras (foi aí que Pareto notou pela primeira vez seu princípio); 20 por cento de seus clientes equivalem a 80 por cento de seu negócio etc. – e foi tido como verdadeiro para a distribuição de riquezas, de modo coerente, ao longo do tempo e do espaço. Parece quixotesco declarar guerra a um fenômeno tão universal.
É um fenômeno, ademais, que não fere ninguém e ajuda todo mundo. Quem ganha 50 milhões de dólares por ano não ganha isso furtando de mim. Em primeiro lugar, para isso que fosse verdade, eu deveria ter 50 milhões de dólares. E, espiritualmente, seria doentio se gastasse meu tempo vivendo, de maneira invejosa, dos ganhos anuais dessa pessoa. Um líder espiritual deveria estar me censurando, não me incentivando, caso esteja esperando sentado, exigindo a parcela de direito da riqueza que nada fiz para gerar. Em um mercado livre, que o cardeal deveria apoiar, o homem em questão adquire essa riqueza por satisfazer os consumidores e melhorar o padrão de vida de outras pessoas. Eu deveria estar comemorando e não me ressentindo disso.
(“Ah, mas os salários dos CEOs são tão altos”, dizem as pessoas que, ao mesmo tempo, são a favor de leis que dificultam as aquisições corporativas, encobrindo, portanto, os CEOs que recebem salários excessivos).
O cardeal, então, diz que os atos individuais de caridade não bastam. Precisamos do Estado, precisamos da violência.
“Maradiaga”, escreve o serviço de notícias sobre religião, “também disse que a caridade pessoal era insuficiente para resolver problemas globais”. “A solidariedade é mais do que alguns atos esporádicos de generosidade”, disse o cardeal.
Ora, isso é verdade: podemos defender o cardeal da alegação de que ele esta incitando a violência quando pede a intervenção estatal, se alegamos que a violência não é realmente violência quando é prenunciada ou levada a cabo pelo Estado. Podemos pressupor que a coerção e a ação voluntária são a mesma coisa. Podemos fazer todas essas coisas, se quisermos redefinir os significados normais das palavras. Entretanto, a menos que sejamos atraídos por transformar o mundo num imenso romance de George Orwell, esse é um caminho pouco promissor.
Acredito que não serei acusado de “interpretação privada” do Novo Testamento quando notei meu insucesso em situar tanto as seguintes declarações ou mesmo insinuações remotas às palavras de Cristo:
O discurso constante a respeito da desigualdade, como se o salário baixo do chapeiro de hambúrgueres tivesse relação com o fato de uma pessoa rica ter milhões de dólares, em vez de o trabalho não qualificado ser facilmente substituído, só alimenta a mentalidade juvenil que manterá essas pessoas de baixa renda exatamente onde estão. Você acha que o caminho a seguir no mundo é ir às ruas e bradar que os outros te devem mais coisas? Então, você nunca chegará a lugar algum. Se quiser seguir adiante, aja para isso. Não espere que as pessoas te deem coisas. Não saia com uma placa e grite para que te deem mais, quando, aparentemente, ninguém no mundo creia que você vale mais, caso contrário, outro empregador já teria te contratado. (Como antídoto, aliás, recomendo o livro de Charles Hugh Smith, Get a Job, Build a Real Career, and Defy a Bewildering Economy [Consiga um emprego, construa uma carreira real e desafie uma economia desconcertante]. Posso antever uma objeção libertária à minha linha de argumentação: o que dizer a respeito da distinção entre as pessoas que, pela riqueza, vieram a satisfazer o consumidor e a melhorar a vida das pessoas, e os que a ela chegaram graças a algum privilégio governamental? Concordo. Não defendo aqueles cuja riqueza foi adquirida por meios injustos do Estado. No entanto, essa distinção se perde no argumento do cardeal Maradiaga.
Ademais, Sua Eminência, de modo manifesto, considera possível falar extensivamente sobre a condição das economias do mundo sem mencionar uma vez sequer os bancos centrais. Há alguma dimensão moral à política monetária? Guido Hülsmann, da Universidade de Angers, um católico que por algum motivo não foi convidado para a conferência, levantou uma hipótese excelente. Do cardeal Maradiaga só ouvimos silêncio. Será que ele pensa que os bancos centrais foram criados para ajudar os pobres? Podemos apenas supor. O cardeal Maradiaga diz que nós, libertários, trememos diante do livro da moda de Thomas Piketty, O Capital no século XXI. Sabe de uma coisa? Isso não é verdade. Vejamos: Piketty inventou uma história tributária dos EUA que se adequa à narrativa, mas que não tem ligação com a realidade; inventou uma história do salário mínimo nos Estados Unidos que se encaixa na narrativa, mas que não tem relação com a realidade; como ele lida com a depreciação é, no mínimo, nada convincente, ainda que central em sua argumentação; e sua visão do relacionamento entre capital e juros foi derrubada há cem anos. Não, não estou tremendo.
O cardeal Maradiaga é igualmente fã do documento desastroso do papa Paulo VI, a encíclica Populorum Progressio, que, na sua leitura errônea das causas e soluções para a pobreza do Terceiro Mundo, juntamente com o endosso aos tipos de desenvolvimento promovidos pelo amparo estatal que estavam em voga na época, que aumentaram, sem dúvida, a quantidade de sofrimento evitável no mundo (discuto isso no capítulo 4 de The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy). Diferente de Paulo VI, um punhado de economistas de livre-mercado, em particular, Peter Bauer, se insurgiram contra a opinião da moda, à custa de um desgaste pessoal, e advertiram que programas como esses enraízam a pobreza, e não a melhoram. Até os opositores mais irascíveis do senso comum, como o New York Times e o Fundo Monetário Internacional foram, por fim, forçados a chegar à essa conclusão (eis o motivo de, no governo de Margareth Thatcher, esse profeta importante ter se tornado Lorde Peter Bauer).
O cardeal Maradiaga já teve o que queria. Já tivemos trilhões de dólares na redistribuição de riquezas, doméstica e internacionalmente, e os resultados falam por eles mesmos. Nos Estados Unidos, o porcentual dos verdadeiramente pobres não é, em essência, afetado e, ao redor do mundo, os maiores aumentos no padrão de vida ocorreram naqueles lugares em que a ajuda governamental foi cortada.
A grande maioria do avanço contra a pobreza no mundo ocorreu sem violência. As estatísticas estão aí para que todos vejam: à medida que a liberalização econômica aconteceu ao redor do mundo, a pobreza diminuiu. Em 1829, 85% da população mundial vivia em “pobreza extrema”. Isso caiu para 50% por volta de 1950, 33% no início da década de 1980 e chegou a 18% no início do século XXI. Como expliquei em The Church and the Market e em outros lugares, é o desfecho natural da expansão da economia de mercado e da divisão do trabalho. Proteste o quanto queira contra a realidade, no entanto, a única maneira de aumentar o padrão total de vida é deixar que somente o setor privado aumente o capital por trabalhador.
Nos Estados Unidos, a pobreza tem diminuído de modo consistente, até que começou a guerra do governo federal contra a pobreza. Ao longo dos últimos 50 anos, esse progresso oi interrompido: o índice de pobreza caiu de modo tão insignificante que é estatisticamente negligenciável.
Nos Estados Unidos, o poder de compra do menor quintil do grupo de pessoas de renda mais baixa aumentou de 15 a 20 vezes ao longo do século XX. Quando olhamos para os números de 2011, entre os pobres norte-americanos – não o público norte-americano, em geral, mas os pobres – 97,8% tinham refrigeradores, 96,6% tinham fogões elétricos ou a gás, 96,1% tinham televisores, 93,2% tinham micro-ondas, 83% tinham aparelhos de DVR, 80.9% tinham telefones celulares além dos telefones domésticos e 58,2% tinham computadores. (Isso não quer dizer que tudo o que importa são as coisas materiais, é claro, mas já que o argumento do próprio cardeal Maradiaga gira em torno da privação material dos pobres do mundo, isso precisa ser mostrado).
John J. Myers, arcebispo de Newark, New Jersey, explicou que na estrutura geral da Igreja, os fiéis têm, obviamente, liberdade de decidir com base no conhecimento que detêm do assunto, quanto às políticas econômicas que creem ser melhores em termos de melhorar a condição dos pobres. Ele não adota a visão raivosa, desdenhosa, de Maradiaga.
Existem discordâncias legítimas a respeito da melhor via ou vias que verdadeiramente ajudam os pobres de nossa sociedade. Nenhum católico pode dizer, legitimamente: “Não me importo com os pobres!”. Se ele ou ela dizem isso, essa pessoa não estaria, objetivamente, em comunhão com Cristo e com Sua Igreja. No entanto, tanto os que propõem o aumento do Bem-Estar Social quanto os que propõem cortes de impostos para estimular a economia podem, com toda sinceridade, acreditar que esses caminhos são os melhores métodos para realmente lidar com os pobres. Essa é uma questão de julgamento prudencial feito por aqueles aos quais foi confiado o cuidado do bem comum. É uma questão de consciência, no exato sentido do termo.
O programa de Maradiaga, ao contrário, se resume a isto:
O programa libertário, reforçado pelas ideias da Escola Austríaca de Economia, resume-se a isto:
“A eliminação das causas estruturais da pobreza é uma questão urgente e não pode ser postergada”, diz o cardeal. Nisso ele está certo. A violência estatal, a real ou o risco, é a primeira causa estrutural da pobreza no mundo. Como foi derrotado, o bem-estar dos pobres e todo o resto foi à um ponto que ninguém, nos últimos 50 anos, teria imaginado.
E é por isso que a Universidade Católica disse para suspender a conferência semana passada: os jovens acham esse quadro moralmente atraente e, cada vez mais, recusam abordagens baseadas na violência. A violência não pode ser o último recurso nesse caso, seja doméstica ou internacionalmente, soluções violentas (promovidas pelo Estado) retardaram o progresso da pobreza e as soluções pacíficas (de livre-mercado) emanciparam mais pessoas da pobreza extrema do que qualquer outra força da história do mundo. Se Sua Eminência encontra espaço na Igreja para o heterodoxo e para o que é simplesmente estranho, aposto que seu coração pastoral também encontrará espaço para os libertários.
*Este artigo foi originalmente publicado em LewRockwell.com.
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